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Tenho um ouvido apurado. Saio - como em muitas outras coisas - ao meu pai, embora nem lhe chegue aos calcanhares na capacidade que tinha em fazer musica fosse com o que fosse. A ele bastava-lhe ouvir uma vez uma melodia, ou experimentar um qualquer instrumento musical, para logo de seguida arrancar acordes quase perfeitos, e poucos minutos de ensaio eram suficientes para interpretar a peça completa. Eu sou teimosa, é o meu grande talento. Tanto hei-de procurar, tanto hei-de experimentar que acabarei por a conseguir tocar. Claro que tal talento pode levar à loucura quem me rodeia…
O piano foi sempre o meu instrumento de eleição. Em casa dos meus tios havia um. Tinha sido nele que as crianças da casa tinham praticado (e praticado e praticado) depois das aulas de música a sério, as que eu nunca tive, que em tempos lamentei não ter e que hoje duvido tivesse paciência para suportar. Mas aquele piano fazia as minhas delícias de menina. Ainda pequenina, abria a porta do escritório, levantava com dificuldade a tampa e pondo-me em bicos dos pés trepava para o banco tentando perceber até onde os meus braços poderiam chegar. Depois, com um único dedo experimentava as escalas, decorando a ordem, descobrindo uma ou outra combinação, tentando que a tecla tocasse a mesma nota que a minha voz, até perceber que o piano tinha uma voz própria, que não a podia comandar, que seria eu que teria que o acompanhar. Era tão silenciosa aquela sala… Era impossível não encher o ar de música: “Quand trois poules vont aux champs” e o dedito hesitante “do-do-la”, não… “do-do-sol”, sim… parece ser isto “do-do-la”… ai “sol”, outra vez “do-do-sol-sol” e agora? “do-do-sol-sol-… la-la… sol”, sim, sim, do principio “do-do-sol-sol-la-la-sol” agora ao mesmo tempo “Quand trois (do-do)poules (sol-sol)vont aux(la-la)champs(sol)”
Ah, que felicidade! O meu dedo sabia uma canção, reconhecia as notas, decorava o caminho saltitando de tecla em tecla… “Quand trois poules vont aux champs, la première marche devant…” e o dedito corria as teclas “do-do-sol-sol-la-la-sol, fa-fa-mi-mi-re-re-do” e eu ria feliz, batia palmas chamava pelos meus tios, queria que eles vissem e se espantassem e aplaudissem o meu feito. E eles vieram, espantaram-se e aplaudiram como sempre fizeram comigo até ao fim das suas vidas.
Ao longo dos anos fui aprendendo outras melodias. Com muita prática e ainda mais teimosia, passei a utilizar primeiro 5 dedos de uma mão e depois as 2 mãos. Nunca achei necessário aprender a usar os pedais, mas deve ter a ver com o meu carácter prático: para quê complicar?
Não, não toco piano, nem de perto nem de longe.
Brinco com as teclas e divirto-me com isso.
Se há melodias perfeitas?
Sim, conheço algumas… De momento só me lembro desta:
“Quand trois poules vont aux champs…"
in "Histórias de menina"