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Casa-mãe

por Maria Alfacinha, em 24.04.12

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Cheguei tarde a casa. Chego sempre tarde. Chego sempre demasiado tarde embora nunca seja demasiado tarde para chegar a casa. Chega-se quando se chega e é sempre bom chegar, finalmente. Cheguei cansada, com frio e com fome e bastou chegar a casa para me sentir melhor. O frio e a fome depressa desapareceram e o cansaço parou de gritar, como se soubesse que já iam tratar dele, como quando éramos crianças e corríamos para casa porque a mãe era perita em esfoladelas nos joelhos, limpava-as com agua oxigenada soprando o ardor, pintava-as com mercurocromo e fazia desaparecer a dor com beijos, porque os beijos curam todas as dores, mesmo aquelas que não se veêm, todas as crianças sabem isso, os adultos têm tendência para esquecer, com excepção feita às mães, aquelas mães a sério que, mesmo depois de crescermos, assim que nos abrem a porta preparam-nos um lanche, não importa a hora, não importa o quê, e depois ficam a olhar para nós enquanto comemos como se fôssemos meninos a regressar da escola, alimentando-se só de nos ver, bebendo cada palavra que dizemos. O meu cansaço sente-se assim, como se a minha casa fosse a sua mãe, sossegando quando a avista, antecipando o momento do aconchego das quatro paredes, o embalar da serenidade, e a segurança do colo onde poderá desaparecer.

 

Chegar a casa é encontrar a paz, na quietude do bairro, nos sons da cidade cada vez mais distantes quase em surdina, na pose preguiçosa dos meus cães estrategicamente enrolados por forma a não me perderem de vista, controlando todos os meus movimentos, não vão deixar escapar qualquer olhar, um simples sorriso, que pode ser o sinal que chegou a hora do mimo, a autorização que anseiam para competirem por uma festa ou uma palavra. Por vezes tento escolher uma melodia que enfeite a noite com acordes doces, mas desisto rapidamente. O silêncio é, descubro em todos os regressos, um bem precioso essencial ao meu equilíbrio e há dias em que até a música me perturba em vez de acalmar, como se me obrigasse a pensar, e a última coisa que eu quero quando regresso a casa é pensar no dia que passou, no dia que já foi, no dia que será amanhã. Porque regressar a casa é também esquecer que há um mundo de obrigações lá fora, uma multidão de outros que já não precisam de mim mas continuam a ocupar todos os meus minutos, e que me roubam o ar que respiro, que me fecham a porta na cara com sorrisos complacentes ao mesmo tempo que exigem compromissos e deveres sob leis absurdas, acenando-me com promessas de um futuro, convencidos, certamente, que anseio pela utopia que pintam em cores de retoma e que só me fazem lembrar aquelas imagens do Paraíso que as Testemunhas de Jeová insistem em utilizar como argumento de conversão, como se ter que esperar a Morte para ser feliz, fosse um caminho de Vida.

 

Ontem cheguei tarde a casa. Mesmo quando chego cedo, chego sempre tarde. Mas nunca é demasiado tarde. Aqui, no meu mundo, há paz. Não amanhã, não daqui a 10 anos, não depois de morrer. Hoje! Neste mundo que criei, onde se fazem lanches para quem chega não importa a hora, não importa o quê, onde o silêncio não pesa, o ar é doce e onde os beijos curam todas as dores, principalmente aquelas que não se veêm. E no armário da casa de banho, está um frasco de mercurocromo, para quando alguém esfolar os joelhos.
Aqui, na minha casa-mãe.


 
 
 
 
 
 
 
 

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