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Numa tarde de chuva da minha infância, presa em casa por instância superior e cansada das brincadeiras de sempre, resolvi fazer companhia à minha mãe que, com uma adolescente e duas crianças para criar, quase todas as tardes tinha uma montanha de roupa para passar a ferro. Tenho uma vaga ideia de me ter instalado perto dela com um livro cheio de histórias que fingia ler – algo que ainda mal sabia fazer – e (aqui já estou a imaginar) inventando outras tantas com personagens que viviam apenas na minha ideia. Certo, certo é que ao fim de algum tempo, a minha pobre mãe, com certeza já cansada do trabalho doméstico e ansiosa que eu me calasse - pois este meu “falar pelos cotovelos" deve ter começado no dia em que nasci - resolveu dar-me uns lenços do meu pai para que eu os dobrasse, recomendando tanto cuidado que teria que o fazer em silêncio para que a concentração não me fugisse. Tarefa tão importante fez-me sentir crescida e lá consegui manter-me sossegada durante alguns minutos, mas a verdade é que não gostava do resultado final. Por muito que dobrasse, e espalmasse, e alisasse os lenços, eles nunca ficavam com o aspecto que tinham na gaveta, quando os roubava para fingir que eram fraldas de bonecas. E assim, aproveitando um breve instante de desatenção da minha mãe, peguei no ferro ainda quente e sentei-me no chão decidida a deixar os lenços impecáveis. Escusado será dizer que a aventura não acabou bem e, pouco tempo depois, os lenços estavam na mesma e na minha perna esquerda ficara marcado o desenho do ferro de engomar.
Lembro-me que o pânico foi grande. Recordo melhor a confusão que se gerou do que a dor que senti. Eu chorava, é claro, a minha mãe desesperava, acho que a minha irmã apareceu, ou foi outra pessoa que estava lá em casa, e naquele tempo não havia carros à porta, e a marca na minha perna passava de rosa a vermelho, de vermelho a cor de vinho, e as vozes exaltadas “temos que levar a menina ao posto”, “telefona ao teu pai para ele nos vir buscar”, e eu com tanta animação já não sabia se chorava da dor ou do ralho que me esperava. Sei que na cena seguinte – a memória divide-nos as histórias assim – já na marquesa e de penso feito, os ânimos mais calmos e a minha mãe medicada, pois quando os filhos estão doentes as mães também precisam de tratamento, consciente que, graças ao terminar do susto, me tinha livrado do castigo, é que me apercebi realmente da dor, aquela sensação de pele queimada em que nos apetece o frio e não o morno da gaze e das pomadas.
Devo ter choramingado, se calhar chorei a sério, e foi quando o meu pai, perdido finalmente o ar preocupado, me beijou a perna por cima do penso e perguntou: "Não está melhor?”. Eu fungando, de beicinho com certeza, assenti meio contrariada e respondi: “Também quero um beijinho da mãe”. E essa foi a primeira vez, que me lembre, que conheci o poder curativo dos beijos-remédio.
in "Histórias de menina"