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O tempo das cerejas

por Maria Alfacinha, em 03.06.15

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Senta-te aqui, dizia-me, e abrindo o saco que trouxera da rua, tirava as cerejas às mãos cheias mergulhando-as na água fria com que enchera a grande taça que colocara entre nós, salpicando a mesa, refrescando as memórias que se seguiriam:

 

Durante anos, todas as semanas, cumpria-se o mesmo ritual.
Era o dia em que se afastavam as cortinas deixando entrar a luz em alegres jorros, fizesse sol ou não. A sala, quente na expectativa da chegada da família, a mesa posta com cuidado, a comida preparada com carinho. Havia sempre sobremesa que era dia de festa, as horas controladas como em nenhum outro dia da semana para que tudo estivesse pronto, para que não se perdesse tempo, que todos tinham mais com que se ocupar e podiam ter outros afazeres combinados. Havia sempre quem chegasse antes da hora para poder ajudar mas, por muito cedo que fosse, já encontrava a casa a pulsar de excitação, o único dia da semana em que o mundo parecia ter parado, esperando apenas encher-se de gente - de vida - novamente.

 

Juntavam-se à volta da mesa, entrelaçando as existências a cada dia mais desgarradas, não porque o escolhessem, mas porque era a vida, era assim que tinha que ser, era a ordem natural das coisas. Aceites as premissas que a tal da vida trazia, a mesa assumia a responsabilidade de, durante algumas horas – poucas, sempre tão poucas – reunir num único volume, os capítulos do livro que cada um ia escrevendo, evitando que a obra final se dispersasse como folhas soltas em dia de vendaval. O ar perfumava-se de risos e histórias, a refeição mera desculpa para confirmar que a distância que separa quem se ama, pode ser medida pelo brilho de um sorriso, de uma mão estendida ou de um simples olhar.

 

Terminada a refeição, um a um todos se iam levantando, levando consigo os pratos, os copos, os talheres, limpava-se a toalha dos restos do repasto e era então na cozinha que os risos cresciam, abafando o chocalhar da loiça a ser lavada, o guinchar do aparador onde, há muito, muito tempo, moravam o serviço bom, os copos de pé e o faqueiro de marca. Depois vinham as despedidas, os abraços demorados, os recados e os conselhos mil vezes repetidos e as promessas de telefonemas que encurtassem a semana que só então se iniciava. Adeus, adeus, daqui a uns dias estamos cá.

 

Calava-se, as horas esquecidas nos dedos, o olhar brilhante perdido na história que não era só sua e eu ficava a pensar se seriam saudades ou apenas fantasias de um tempo que os anos tinham suavizado e até engrandecido. Mas depois sorria, lavava mais umas cerejas – dá cá tua mão! – e eu dava graças aos Céus por aquelas memórias que lhe aqueciam os dias e lhe faziam companhia.

Era o tempo das cerejas.

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publicado às 17:59


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