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O homem dos pombos

por Maria Alfacinha, em 22.06.15

bronze-man-with-his-dog.jpg

Chegam primeiro aos pares, planando sobre o passeio, desenhando elipses quase perfeitas. Depois juntam-se em nuvens de excitação, bandos de asas ligeiras voando em contramão. Esqueço sempre o que estou a fazer, a atenção presa no espectáculo que me proporcionam, uma dança de coreografia desordenada, quase rebelde e no entanto perfeita. Surgem então as gaivotas, ruidosas e imponentes, num rompante estridente, anunciando o que já sei: vem aí o homem dos pombos. Vejo-o quase todos os dias, atravessando o jardim, carregando dois sacos, que já lhe conheço os gestos e sei exactamente o que vai fazer. Pombos e gaivotas já o esperam, as gaivotas por cima do relvado, os pombos por cima do passeio que o atravessa. O homem dos pombos prossegue a sua marcha, no mesmo passo com que chegou e, sensivelmente a meio do passeio, despeja um dos sacos chamando, assim, os pombos, que mergulham junto aos seus pés para o festim. Depois, entra no relvado e espalha o conteúdo do outro saco, em mãos cheias, por sobre a relva. As gaivotas descem para o almoço e o homem dos pombos fica ali, quieto, saboreando o resultado do seu gesto.


Não sei que idade tem, nem o que faz. Por vezes, quando regresso a casa, encontro-o a caminho de uma tasquinha esconsa onde servem refeições por meia dúzia de euros. Veste invariavelmente de ganga, calças e blusão notoriamente usados e sempre impecavelmente limpos. Nos pés, uns ténis pesados e muito estimados e na cabeça um boné, que só tira quando se senta sozinho à mesa onde, os gestos lentos, quase delicados, denunciam o prazer com que saboreia a refeição. Sempre que o vejo não resisto a observá-lo de forma discreta, não o vá embaraçar. E daí, talvez seja apenas mania minha, se calhar nem se atrapalharia e até, quem sabe, me oferecesse um daqueles olhares doces que já lhe conheço. Caminha sempre em passos demorados, não porque demonstre dificuldade no andar, mas como se os trajectos da sua vida não tivessem horários e não fossem mais que agradáveis passeios sem urgências, a cabeça levantada em pose segura, o tronco direito tornando-o grande, apesar da estatura miúda, os olhos brilhantes de uma curiosidade quase infantil e um sorriso escondido nos lábios.


Nunca o vi de olhos baixos. Nunca lhe ouvi a voz. Atrevo-me a adivinhá-la suave, pela forma como conversa com o cão que o acompanha para todo o lado, preso numa trela desnecessária e sempre lassa, um rafeiro com mel nos olhos, de pelo brilhante - o brilho lustroso de muitas carícias - e que parece nem tocar o chão, imitando o caminhar leve do amigo. Porque é um amigo que o leva, um companheiro, um irmão. A amizade entre aqueles dois seres é real e palpável, sente-se a cumplicidade entre as suas duas almas quando passam por nós, serenas e etéreas, como se fossem anjos em forma terrena. Observá-lo deixa-me num estado de quase encantamento, sonhadora e feliz. Apetece-me caminhar ao seu lado, acompanhá-lo no passeio, perguntar-lhe o nome, pedir-lhe que me conte uma história, que me deixe ser sua amiga. Vê-lo, limpa-me os olhos e conforta-me a existência. Não me perguntem porquê, nem o que me leva a sentir assim. Não sei como se chama ou onde mora, não lhe conheço outra companhia senão a do cão com olhos de mel. Há dias em que quase me convenço que não existe - não neste mundo - e que só eu o consigo ver. Mas sei, tenho a certeza, que um dia, espero que distante, vou sentir a sua falta.

E essa certeza, basta-me.

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publicado às 16:45


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