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Dia de merda

por Maria Alfacinha, em 26.06.15

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O dia é uma merda quando tens que testemunhar em Tribunal e descrever a estranhos, à frente da própria mãe, que o filho a insultava, empurrava e enxotava como se de uma galinha se tratasse – xo xo sai-me da frente - a mesma mãe a quem foi explicado à porta do tribunal que podia não prestar declarações porque era mãe, e ela confusa - mas eu não posso mentir - e insistiam - não está a mentir, apenas não está a dizer nada – e ela torcia as mãos - mas fui eu que fiz queixa e agora vou fazer-me de esquecida? - e o argumento que nunca deveria ser utilizado - a senhora quer ver o seu filho preso? isto é muito serio, é um tribunal e ele pode ser condenado - e tu a ferver - é sério sempre que ele a maltrata - e do outro lado, que não és tu a mãe mas apenas a que assistiu, a que lhe ouviu o medo na voz, a que perdia a paciência quando ela hesitava e contava histórias de quando era menino para justificar tudo - mas ele é doente, não acha que deve ser tratado como tal? - e a tua memória dispara e relembra todos os tratamentos, todos os meses que ele ficou longe, todos os regressos porque está curado, todas as recaídas pouco depois, e a mãe hesita, acha que vai ser penalizada, que nunca mais a levarão a sério, e o seu menino, arrogante e a crescer na postura e na voz – queres é ver-me preso, não é? é, não é? é só isso que queres – rancoroso e agressivo, à porta do tal tribunal onde vai ser julgado por maus-tratos, o seu menino que ela não quer ver preso, mas de quem tem medo, o seu menino que ela esquece que tem quase 40 anos e com quem não sabe lidar, e o advogado a repreendê-lo – ó homem, tem que se controlar, um homem só é homem quando se sabe controlar – enquanto te observa pelo canto do olho, a descrente que não se cala, que se lembra de tudo porque não é mãe e que ironiza – tem tratamento para isto? – e o homem das leis insiste – e a prisão é solução? – e tu não consegues evitar o sorriso – solução para quem? – e chamam todos um a um, iniciam-se os julgamentos, dois outros antes daquele que te levou ali, quatro horas à espera numa sala sem janelas, e quando finalmente te chamam querem saber se ouviste os insultos, se viste os empurrões, se te lembras das datas exactas e tu viste os empurrões, ouviste os insultos – mas afinal ele chamou-lhe vaca ou puta? – e já passaram anos e lembras-te lá das duas qual foi – puta ou vaca, não me lembro, mas o sentido era esse – e nem acreditas quando insistem – então não sabe se chamou puta ou vaca? – e coras de vergonha pela mãe que tem que ouvir repetir, uma e outra vez, o insulto – a palavra exacta? – e todos os olhos em ti e não pensas quando perguntas já com a impaciência na voz – mas qual é a diferença entre puta e vaca? o sentido não é o mesmo? – e fica registado que a testemunha não recorda exactamente se o insulto foi puta ou vaca, assim como não recorda a data exacta em que se colocou entre os dois, para que o filho não agredisse a mãe ou o dia em que a acompanhou à esquadra para apresentar queixa, e abandonas a sala sem esperar pela leitura da sentença que, já sabes, já te disse quem anda nestas vidas e sabe como tudo funciona, não será pesada, porque é uma primeira ofensa e corres para o emprego a pensar que não é a primeira ofensa é apenas a primeira queixa e será a última, como à noite a mãe te confirma em lágrimas– nunca mais, nunca mais, é muita dor - quando telefona a agradecer o teu testemunho e fazes votos que nunca mais seja preciso, e deitas-te com uma dor de cabeça monumental sem acreditar - porque não és mãe e não o vês como o menino que carregaste em ti e não lhe deste de mamar - que ele aprendeu.

 

Dia de merda.

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