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Morrem-se-me as vontades na preguiça do calor, esticada na rede de pano grosseiro, à sombra fresca do telheiro, uma perna dobrada, em pose despudorada, a outra pendendo na beira do tecido, o pé forçando a parede, embalando a tarde, iludindo-me o querer. Um livro aberto numa página que já não recordo, abandonado em cima do peito, uma mão repousando na capa, a outra desalinhando o cabelo. Não me obriguem a falar, a menos que vos apeteça conversas sem tino, que os sentidos tomaram conta da lógica e do senso e desarrumaram-me o pensamento. Fecho os olhos para entender estes sentires, e descubro que é mais fácil escrever assim. Nem o bater compassado das marretas, que destroem mais uma casa ao fundo da rua, nem o ladrar dos cães que se esganiçam no portão, em manifestação inequívoca da soberania do seu território, conseguem incomodar-me. Pelo contrário, todo o movimento sonoro que acompanha o ritmo deste quase inconsciente baloiçar, aguça-me ainda mais os sentidos, desnudando as vidas que me rodeiam, tornando-me numa testemunha indiscreta de gestos que não são meus, que se pretendem privados e que, mor desta minha preguiça volúvel, acabam por ser expostos em praça pública, sem qualquer remorso.
Ah, como eu gosto de preguiçar! Esquecer horas e tarefas, deixar que a imaginação me leve para onde lhe apetecer, entregar-me a esta modorra que me recorda a sensualidade dos trópicos, onde todas as paixões são possíveis e violentas, onde a única urgência é a ânsia do toque, onde somos só pele e a transpiração é doce, espessa e cheira a imprudência e loucura. Ah, como eu gosto dos dias de calor que me roubam a respiração, fazendo disparar o meu peito, tornando palpável o sangue que corre nas minhas veias sem rumo, endoidado, desregrado, despertando-me a consciência de cada recanto do meu corpo, aquele deixar abraçar-me pelo vento quente, quando sopra manso e me larga zonza em bebedeiras de pele. Nada como o chinelar do tempo sem pressa, a espera pelo fim da tarde que me provoca o desejo, o sol que fica em mim mesmo depois de se deitar, mesmo depois de o tentar lavar, as marcas dos seus raios que se confundem com o aroma do banho, sussurrando galanteios mudos quando escolho um vestido decotado.
Ah, como eu anseio o Verão, que transforma o cenário onde a minha vida se desenrola - logo a mim, que me alimento de Sol e mato todas as minhas sedes em céus de estrelas, feitos écrans, onde projecto sonhos em sessões contínuas - atrasando sempre o repouso, num receio imenso de perder uma única sensação, um único minuto de uma vida que se esgota na emoção de um nascer do sol, chamando-me para perto do mar que nunca me cansa, que nunca me assusta, que me deixa sempre a pensar que foi aquele o útero onde fui gerada, o colo que me consolou o choro, a canção que me embalou. E nessas noites curtas, que se tornam longas porque prenhas de sentidos e confidências, prendo um sorriso no peito, e acabo por adormecer exausta, num sono profundo, repleto de palavras e fantasias, em que só assim me atrevo a acreditar.