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Encalhada

por Maria Alfacinha, em 29.10.15

EDWARD HOOPER Cotidianidad y genialidad, cine e in

Chegara a casa mais cedo do que era costume. Estava cansada, ansiava por uma noite sossegada, um sono reparador. Normalmente saía do autocarro duas paragens antes da sua e dava uma volta pelas ruas, observando a azáfama de quem regressava ao lar ao fim do dia, namorando as montras das lojas, arrastando um pouco mais a hora de regressar, adiando o silêncio que nem sempre conseguia disfarçar. Quando se sentia quase feliz oferecia-se algumas pequenas loucuras. Por vezes, entrava numa das lojas e comprava uma blusa cara, daquelas que se escolhem para uma festa e que sabia nunca estrearia. Mas gostava de as possuir, tocar-lhes, cheirá-las, olhá-las arrumadas e impecáveis no meio do roupeiro cheio de fatos escuros e fora de moda. Outras vezes, parava na pastelaria chique que ocupava o canto da grande avenida, sentava-se numa mesa perto da janela, e pedia a carta dos gelados. Invariavelmente escolhia uma Banana Split, por causa da bonita travessa branca em forma de canoa, as duas bolas de gelado de cores berrantes, não importava o sabor desde que sobressaíssem na montanha de chantilly - sorria: pode abusar, estou com a tensão um bocadinho baixa - enfeitado com raspas de chocolate e um espesso topping de morango. Hesitava sempre um breve momento antes de mergulhar os talheres naquela pequena obra-prima. Das primeiras vezes que se permitira tal aventura, ouvira nitidamente a voz da mãe, autoritária e fria, recriminando-a: “É para a engorda? Como é que pensas arranjar marido? Encalhada e gorda...” e mal tinha tocado no gelado. Agora sentia – com algum remorso, é certo - que as palavras já não a incomodavam, pelo contrário, era essa mesma voz que lhe redobrava o prazer da transgressão. “Pobre mãe...” pensava enquanto lambia gulosa a colher “se me visse agora, morria outra vez...” e quase perversamente, misturava pequenos pedaços de gelado, fruta e chantilly.

Mas hoje sentia-se demasiado cansada para tais passeios. Tinha mesmo recusado o convite da Mariana, com quem trabalhava há muitos anos, para jantar lá em casa. Não que noutra ocasião o tivesse aceite. A única vez que o fizera sentira-se alvo do desprezo da filha da colega, uma adolescente que a mirara sem pudor, tendo mesmo comentado os sapatos deselegantes que ela normalmente usava. Os pais bem que tinham tentado disfarçar a má criação, mas ela não conseguia esquecê-lo. Até porque a rapariga tinha razão. Os seus sapatos eram sapatos de velha, como a mãe tantas vezes lhe repetia, uma das muitas desculpas em que aproveitava para lhe lembrar que não tinha ainda arranjado marido. Ela fingia que não ouvia, perdoava-lhe a maldade, culpava a doença que a deixara presa à cama ainda muito nova. O pai desaparecera, assustado com a responsabilidade - ou seria o trabalho? - de cuidar de uma inválida e educar uma menina que ainda mal tinha saído da infância. As lides da casa aprendera-as com as vizinhas e fora uma tia que a ensinara a tratar da mãe. Só a força de vontade a impedira de desistir da escola e mais tarde conseguir um emprego, monótono mas seguro, que lhe permitira aumentar a pensão de invalidez de que viviam e proporcionar-lhes algum desafogo.

Porém, hoje, não queria relembrar nada disso. Queria silêncio e paz, dormir profundamente até de manhã. Podia tomar um daqueles comprimidos que a mãe tomava. Um apenas, não lhe havia de fazer mal, e ela precisava tanto de dormir. Despiu-se sem pressas, vestiu a camisa de dormir e abriu a cama com cuidado. Da gaveta da mesa-de-cabeceira, tirou o frasco que procurava e dirigiu-se à casa de banho onde encheu de água o copo dos dentes. Abriu o frasco, pegou num comprimido e engoliu-o com um pouco de água. E foi então que reparou na mulher que estava à sua frente, reflectida no espelho. Por momentos não se reconheceu. Depois quase sorriu. “Estou a ficar parecida com a mãe...” Devia ser da camisa de dormir, também estava fora de moda. Decidiu comprar uma nova. Ouviu uma gargalhada surda: "Encalhada..." e reconheceu a sua própria voz. A imagem no espelho devolveu-lhe o sorriso. Afastou o cabelo da cara. “É do cansaço. Estou cansada. Muito cansada. Só preciso de dormir. Dormir até de manhã”

E lentamente, engoliu um a um, todos os comprimidos que estavam no frasco.

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publicado às 11:24


1 comentário

De Maria a 30.10.2015 às 15:05

Pode ser uma história, mas é também muitas realidades! ficção ou realidade, é sem dúvida um bonito e bem escrito texto.

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