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Uma mulher bonita

por Maria Alfacinha, em 11.04.12

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"Desculpe interromper. Posso dizer-lhe uma coisa? Posso? Queria agradecer-lhe. Fez-me sorrir e já há muito que não o fazia. Muito obrigada. Do coração. Sentar-me? Não incomodo? Agradeço. Não, não quero tomar nada, estou bem assim. Triste? Talvez. Pareço triste? Deve ter razão. Tenho andado a coleccionar dores e mágoas, sabe? Perdi, na estrada da vida, a vontade e os sonhos. Viver tornou-se um fardo, um peso que tenho que carregar. Gostaria de dizer a mim mesma que vai passar, gostaria de acreditar nisso. Mas a cada dia que passa mais distante fico de tudo e a esperança tornou-se uma palavra vã. Já não espero nada. Não espero nada da vida, não espero nada de ninguém. Sobrevivo não me esquecendo de respirar, esforçando-me por acordar todas as manhãs, arrastando-me no cumprimento das tarefas, iludindo-me com os poucos momentos em que a vida parece fazer sentido. Estou cansada sim, mas já não é um cansaço físico. Com esse consigo lidar, sempre consegui. É um cansaço emocional, como se o coração não fizesse mais do que bombear sangue. Acusam-me de frieza, de não ser capaz de sentir e eu sei que é assim.

Desculpe novamente. Não converso há tanto tempo que já não o sei fazer. Sequei-me nas esperanças que me foram roubadas, gastei-me nos sonhos que não me deixaram sonhar, fiquei vazia de propósitos, de vontades. Dias há em que me atrevo a tentar mudar o trajecto deste caminho que não escolhi, agarrando-me a cada gesto, esforçando-me por desenhar novos planos, pegando em cada palavra com as duas mãos, tentando, quase em desespero, torná-la num projecto, algo por que ansiar. E por cada pequeno destroço a que me agarro, a cada pequeno grão de esperança que tento fazer germinar, surgem dez, vinte eu sei lá quantos outros percalços que me roubam a atenção e desperdiçam o meu tempo. A felicidade, ou algo parecido que possa chamar assim, já só a encontro no sono, nas horas em que mergulho na escuridão e esqueço, ou faço por esquecer, esta vida que não quero, que não quis, que nunca quis para ninguém. Dormir é hoje o meu único prazer, um prazer com sabor amargo pois a cada acordar ganho a certeza que perdi horas de vida, que desperdicei o pouco tempo que me resta, que nos resta a todos.

Sonhar? Não, já não sonho. A cada acordar estou mais velha, mais perto do fim mas já não me importa morrer, já não me custa pensar nisso. Não procuro a morte mas não me assusta. Em dias de maior desespero quase que a vejo como uma aliada, uma amiga com quem posso conversar, que não me diz para lutar, que não me exige nada. Noutros dias sinto apenas que ela está ali, ao meu lado, uma presença quase confortante. A cada tropeço, a cada nova queda, sorri-me e murmura: um dia… um dia. Não me estende a mão, não me ajuda a erguer, não limpa as minhas feridas ou seca as minhas lágrimas. Observa-me e sorri. É uma mulher bonita, a Morte. Bonita, não sedutora, pelo menos ainda não a vejo assim, é apenas bonita, calma. E sorri, sorri muito. Quando eu sorria, sorria assim. Um sorriso bonito como o meu. As vezes, antes de adormecer, fico a pensar nela, a imaginá-la. Adivinho-lhe o abraço quase maternal, o colo repousante e penso como seria bom deixar-me embalar no seu peito. É uma sensação boa, sabe? Não ter medo de morrer. É menos uma preocupação, menos uma dor para lidar.

Agora deixei-a triste. Devia ter estado calada. Posso abraçá-la? É uma boa ouvinte e quero agradecer-lhe. E já me fez sorrir outra vez, está a ver? Volto para casa com a alma mais leve. Obrigada, obrigada do coração. E seja feliz, sim? Não permita que lhe roubem o sorriso. Nada nem ninguém tem o direito de o fazer. Nada nem ninguém."

in "Gente"

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publicado às 16:18


4 comentários

De miilay a 11.04.2012 às 19:35

Lindo, de se ler, triste fica o coração com a dúvida se será o que sentes e aí, não amiga, vamos lá a sorrir, para ficares uma MULHER BONITA.
Espero que não seja o teu sentir...
Um abraço
miilay

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