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Receio que a idade me roube esta despreocupação de normas, regras e convenções, esta necessidade de janelas escancaradas e cortinas afastadas, este gozo de ver o sol a queimar os estofos, o vento a derrubar bibelots e a folhear os livros que tenho espalhados um pouco por toda a casa - e que eu corro a fechar não vão as palavras cair, ou quem sabe estejam a sofrer agarrando-se desesperadamente às folhas de papel - esta quase obrigatoriedade em manter as portas abertas - pode alguém que eu amo, ou possa vir a amar, querer entrar - e ausência de fechaduras para que só fique quem quiser ficar. Receio que ela me leve - seja lá para onde vão os nossos quereres quando envelhecemos - este prazer de me sentar perto das pessoas, mesmo que de longe, apenas para as observar, para as ouvir, imaginar, conhecer-lhes as histórias, a vida, a alma, esta vontade de lhes ler nos gestos - os sonhos que ainda não sonharam, que nem sequer percebem que sonham - interpretar-lhes os sons que não querem dizer o que dizem, que se inventam e transformam à saída dos lábios, este fascínio em lhes adivinhar os sentimentos, descobrir-lhes a cor do coração, uma réstia de amor ou uma paixão.
Receio perder esta alma cigana que me faz fugir para a rua, ao encontro da vida que tantas vezes deixamos passar por nós, que me permite sentir o palpitar das casas prenhas de gentes, das ruas plenas de emoções, que eu absorvo por todos os poros, registo no olhar, e que acabam por se transformar em linhas - de letras espalhadas - pelas margens dos jornais, das revistas, em guardanapos de papel, qualquer coisa onde possa escrever, às vezes num quase desespero para conseguir guardar, para sempre, aquele minuto que não se vai repetir mais. Receio que desapareça esta capacidade de me emocionar com os pequenos gestos, que os meus olhos sequem e me tornem cega à beleza das cores, que a dureza da indiferença me rompa os tímpanos e me impeça de entender a gentileza e o carinho nas palavras, a singeleza do canto dos pássaros ou o marulhar das ondas à beira mar que, ironicamente, me roubem o único bem que é realmente meu, e que faço questão de oferecer às mãos cheias - porque quanto mais dou mais tenho, como se crescesse e se multiplicasse em mim - porque nada mais tem sentido nem razão de ser, este dar que explica tudo, que é capaz de enfrentar qualquer dor ou bicho papão, que me torna imensamente rica sem nada ter.
Mas receio acima de tudo, a amargura, o descrer das gentes, o frio cortante que me invade os dias quando riem de mim - que menosprezam o meu nada pedir, logo eu que acredito que é possível ser só alma e coração - duvidando do que faço, porque o faço ou questionando o que sinto. Receio um dia mergulhar nos olhos de alguém que ame e não me ver reflectida neles, despertando para uma realidade que não quis, como se tivesse vivido uma vida inútil, desperdiçado forças numa tarefa que nunca poderia cumprir, apenas e só, porque não é possível apenas dar, é essencial que também queiram receber. E é essa amargura - há dias, momentos, em que sinto que ela chega, de mansinho, aproveitando a minha fraqueza, uma qualquer distracção - a dor da descrença, que vejo em tanta gente, que eu mais receio que um dia se instale no meu peito, sem pedir licença, e o feche, para sempre.
Talvez - quem sabe? - os meus receios sejam infundados. Quem sabe?