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Tenho as mãos vazias de espaço.
As mãos, as horas, o querer.
Esgoto-me nos dias que fogem por entre as tarefas necessárias e enfadonhas, pegajosamente estéreis. Escapou-se-me o conceito de vácuo, como se a minha vida fosse uma calçada de calcário e basalto, daquelas bem alfacinhas, bem portuguesas, com ondas e caravelas e corvos, onde nada medra, não porque a sua execução tenha sido perfeita mas porque lhe despejaram por cima uma aguadilha de cimento que impede a pedra de respirar, deixando-a presa no desenho que a torna única, bela e possante, mas que lhe encarcera a imaginação. Espraio o olhar nas avenidas velhas, tentando abstrair-me das gentes que passam, que pisam a minha calçada sem nela repararem, e não consigo. Vejo-os largando sacos de compras e queixas mesmo em cima das formas das sereias que já não as enfeitiçam, que não ouvem, como se as histórias de amor e lágrimas que elas cantam, fossem palavras mudas sem melodia. Percebo assim que esta vida não é minha, não a que quis, não a que eu construi, mas apenas a vida de todos os rostos tristes que passam por mim.
Porque a tristeza invadiu a minha cidade, marcando–a com olheiras e rugas nos prédios abandonados, roubando a luz dos olhos de quem envelhece depressa demais, os gestos gastos na pressa do trânsito, no cumprimento dos horários, feridos pela crueldade dos acontecimentos, cravando-lhes na pele a indiferença de quem se sabe impotente e cansado demais para ter esperança. Não é melancolia, não é saudade. É um deixa-andar exausto de quem parece já não acreditar num amanhã melhor, de quem relegou os sonhos para um outro tempo, para uma outra existência, como se a luta pela felicidade não fosse legítima e justa, como se fosse um luxo que só alguns poucos privilegiados podem cuidar de alcançar. Não há sol que lhes valha, não há calor que os aconchegue. Os dias arrastam-se sem vontade, os corpos moídos e pesados, os sentidos embriagados por campeonatos de audiências, por apelos a patriotismos que os embrutecem e lhes roubam a capacidade de reflectir, destruindo as sementes da revolta, da insubmissão, da desobediência.
Ah, desfaçam-se os céus em tufões de raiva que varram esta pasmaceira a que chamam vida, dissolvam-se em lágrimas de nuvens, numa chuvada espessa e fresca que lave as almas consumidas por dores inúteis, despenhem-se nas ruas qual trovões indignados, em rugidos de insurreição, limpando o ar do desânimo e da inanição. Talvez a Natureza seja capaz de exorcizar este quebranto que tomou conta dos espíritos, agitando as mentes, despertando-as do torpor a que se entregaram e que se oiça novamente a voz do poeta em canção heróica:
“Acordai !
Acendei de almas e de sóis
Este mar sem cais nem luz de faróis
E acordai depois
Das lutas finais
Os nossos heróis
Que dormem nos covais
Acordai !”