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Não entendem que remexer nas dores é como escarafunchar uma ferida?
Nunca vos disseram que a crosta que se forma não é para ser arrancada, que se deve esperar que caia com o tempo, porque o tempo tudo cura, o tempo tudo suaviza - é o que se diz não é?, mas é mentira, o tempo não cura nada excepto o que já estava curado, o tempo apenas nos traz mais tempo, mais dias, outros dias, novos ou iguais, pouco importa, são outros dias para usar, que temos que usar, cheios de tarefas e com sorte, de sorrisos - é mentira, o tempo não suaviza nada, o tempo apenas nos ocupa o corpo e a mente e então parece que nos esquecemos, que já não dói tanto, quando afinal continua tudo na mesma, apenas nos distraímos, continua a doer apenas não nos apercebemos.
Aliás o tempo não faz nada senão correr, não traz nada de novo excepto todos os dias mais um nascer do sol. Não tem qualquer poder curativo nem é capaz de cumprir nenhuma promessa. Somos nós, não o tempo, que temos a capacidade de curar, ou tentar curar, ou ter esperança que nos iremos curar. Somos nós, não o tempo, que pacientemente devemos esperar que a crosta caia por si só, naturalmente, porque já cumpriu a sua função de proteger a nossa dor, essa ferida que então precisa de fechar, criar uma nova pele, regenerar-se e, com um pouco de sorte, não restará sequer uma cicatriz que, essa sim, nunca nos deixaria esquecer, por muito que o tempo corresse, por muito distraídos que andássemos.
Não entendem que remexer no que não se pode alterar, é como atirar ao chão a caixa onde tento juntar os pequeníssimos pedaços em que se partiu o meu coração, espalhando-os pelos cantos mais escuros dos meus dias, escondendo-os nas sombras das saudades? São pedaços cada vez mais pequenos que me recuso a colar, porque me convenço que se não os colar não se podem partir ainda mais, e que afinal se estilhaçam uma e outra vez a cada dor de alma, de cada vez que alguém parte, a cada má notícia, a cada esperança que se escapa, mais uma batalha perdida, mais um escolho no destino que já não quero cumprir - não quero, não agora quando não me restam forças senão para sobreviver - esses pedaços tão pequenos que já tantas vezes desisti de encontrar e que acabo por descobrir nas lágrimas que me acordam a meio da noite, nos pequenos gestos que cumpro instintiva, mecanicamente, nas marcas dos vazios que não consigo limpar, nos trajectos sonhados que, sei, não esquecerei.
Não entendem. Não entendem nem irão entender.
Quem sofre convence-se que é único, que mais ninguém sofre assim. O sofrimento é egoísta, é cego, indiferente a outras dores que não a sua, ignorante no que toca ao sofrimento dos outros.
E eu? Eu limito-me a recolher novamente os pedaços e a fechá-los na mesma caixa.
Talvez se fechar os pedaços do meu coração nesta caixa, se a fechar a sete chaves e a esconder bem longe do olhar, talvez - apenas talvez, mas é a esperança que me resta - não se volte a partir nunca mais.
(porque as palavras curam dores
porque é difícil esquecer
porque sim)