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Era uma vez uma menina que não gostava de ser criança. Não que fosse infeliz, não que a tratassem mal. Mas falava uma língua que as outras crianças da sua idade não entendiam e a menina gostava de falar e gostava das conversas de gente crescida, do som das palavras que não entendia. A gente crescida percebia que ela estava a ouvir e afastava-a: “Vai-te embora menina! Estas conversas não são para crianças”. Outros, percebendo o efeito que este gesto tinha na menina vinham atrás dela e tentavam consolá-la. Sentavam-se no chão e falavam língua de criança. E a menina aborrecia-se com as palavras simples que lhe ofereciam. Entendia-as todas e ela preferia o som das palavras que não entendia. Ficava presa no sorriso de quem lhe queria bem e imaginava sons de histórias que inventava para esconder as palavras que ouvia. Não podia desiludir aquela pessoa crescida que se esforçava por a consolar. E por isso sorria, não ouvia, mas sorria para fingir que lhe prestava atenção. Sabia já que assim a deixariam mais depressa e que poderia fugir para o quintal à procura de borboletas ou bichos de conta.
Era uma vez uma menina que tinha pressa de crescer. Não gostava de estar presa num mundo onde não falavam a sua língua. Era estranho este mundo. Os bebés entendiam-na, os animais também. Uns e outros gostavam quando ela aparecia. Os bebés guinchavam e agitavam as pernitas. Ela contava-lhes histórias e eles riam-se e puxavam-lhe as tranças. Os cães corriam para ela e faziam-lhe companhia deitados ao seu lado na relva, quando ela ali montava escolas e mercearias e hospitais. Gostava também de montar trabalhos. O pai ia para o trabalho e ela gostava de montar um trabalho igual. Um caderno, muitos lápis, um búzio grande a fazer de telefone. Depois sentava-se à frente destas coisas e ficava quieta. À espera. De vez em quando rabiscava no caderno, mais desenhos que palavras que ainda conhecia poucas e no fim o seu nome que já sabia escrever. Falava com os cães conversas de clientes, inventava o toque do telefone e encostava o búzio ao ouvido prestando atenção ao mar do outro lado. Dizia: “Pois, pois! Obrigado!” pousava o búzio e voltava a ficar quieta. À espera. Era isso o trabalho. O nosso nome em todos os papéis e esperar que o mar nos telefonasse.
Um dia a irmã da menina que vivia fechada num mundo estranho, pegou-lhe na mão e levou-a a visitar uma senhora de bata branca, como as dos médicos, que sorriu para ela e lhe acariciou a cabeça. Sentou-se num sofá, com as pernas a balançar, enquanto as duas conversavam percebendo que alguma coisa de diferente se estava a passar. O sol entrava pelas grandes janelas e a menina sentia-se quente e confortável ali. Reconhecia o cheiro a lápis de cor e olhava curiosa para os desenhos espalhados pela sala. A senhora então voltou a sorrir, levantou-se e à laia de despedida disse-lhe: “Então vemo-nos em Outubro” e a menina percebeu que alguma coisa tinha mudado quando a irmã lhe explicou que ela vinha para aquela escola. Ah, nunca um Verão custou tanto a passar. Todas as pessoas crescidas lhe falavam na escola, como ia ser bom aprender a fazer contas. E ia poder finalmente ler sozinha as histórias que usavam para a adormecer. E ia ter uma mochila, e um livro só dela que tinha que estimar. E o coração da menina batia mais forte cada vez que lhe falavam na escola e diziam que já era crescida.
Até que o grande dia chegou. A menina acordou cedo e saiu orgulhosa de casa com a mochila que cheirava a nova, bem como tudo o que lá ia dentro. Os tios que viviam ao lado, vieram à rua despedir-se dela e a menina, vaidosa, apressava os pais. Partia para um novo mundo e não queria chegar atrasada. À porta da escola olhou com estranheza todos aqueles meninos vestidos como ela. Alguns sorriam mas muitos choravam agarrados aos pais. Quando a senhora de bata branca se aproximou sempre a sorrir, foi sem medos que lhe pegou na mão, tão excitada para a seguir que os pais tiveram que lhe pedir o beijo que ela já esquecia. Antes de entrar voltou-se para trás para acenar aos pais que ficaram parados no sítio onde os deixara. O pai dava palmadinhas nas costas da mãe que tirava um lenço da mala. Hesitou quando percebeu que a mãe chorava mas ela sorriu-lhe e fez-lhe sinal para continuar. E a menina cheirando a novo como a sua mochila e tudo o que lá ia dentro entrou finalmente no mundo dos crescidos.
in "Histórias de menina"