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“Eras muito cachorrinho quando apareceste aqui na rua, cheirando todos os portões, sacudindo o corpo a todas as pessoas que passavam a correr. Cachorrito simpático e esperto! Assim que me viste sorrir correste para mim como se já me conhecesses. Seguiste-me até ao carro, radiante com as festas e a atenção que eu te dava. Disse-te: “Vai-te embora, vai! que eu tenho que ir trabalhar!” E tu sentaste-te no passeio fingindo que obedecias. Nessa noite, quando cheguei, estavas à porta de minha casa, deitado no tapete. Digo sempre que não te adoptei, foste tu que me adoptaste a mim.
És o cão mais doce que alguma vez conheci, sabes? Um cachorrinho safado. Davas umas voltinhas pelo bairro e trazias de tudo para casa. Lixo, a maior parte das vezes, mas de quando em quando esmeravas-te. Uma vez foi um saco com bifes, outra vez um pacote de fiambre, um dia até trouxeste um carapau que alguma vizinha mais confiante tinha deixado a salgar. Quando eu te via ao fundo da rua, muito direitinho, de focinhito levantado carregando qualquer coisa na boca, já sabia que tínhamos asneira. Lembras-te do dia em que me vieram dizer que tinhas roubado os chinelos da vizinha da frente, aquela carrancuda com a vida a quem as crianças chamavam bruxa? Tive que atravessar a rua de cócoras para os devolver sem que ela me visse. E tu, de orelhas arrebitadas, como se não percebesses porque é que eu ralhava, achando, com certeza, que não dava valor às prendas que me trazias. Depois cresceste e passaste a trazer os amigos que encontravas na rua. Comiam, bebiam e seguiam o seu caminho. Foi assim que adoptámos o Gaspar, lembras-te? Foi o único que deixaste entrar no quintal, como se soubesses que ele não tinha para onde ir. E lembras-te como lhe sentiste a falta quando ele partiu? Diziam-me os vizinhos que uivavas o tempo todo enquanto eu não chegava. Ou então sabias que o Pepo precisava de uma família e foi a tua forma de mo dizeres. Quando o trouxe para casa assumiste o papel de mano velho e deixaste as traquinices para ele fazer. Só continuo a pedir-te desculpa por ter trazido a Lolita, o nosso furacão com patas. A paciência já não abunda, não é? Mas eu sei que gostas quando ela se enrosca em ti para dormir ou quando te lambuza o focinho num ataque de mimos.
Passaram quase 13 anos desde que me escolheste. Sei que estás doente e tu também o sabes. Por isso te deixei há dois dias dar mais uma voltinha pelo bairro que tu tão bem conheces. Voltaste cansado mas satisfeito. Lambeste-me as mãos e enroscaste-te ao meu lado. Hoje quando cheguei não me vieste receber como de costume. Estavas deitado e assim ficaste, sem forças para me seguir. Tive que te pegar como se fosses cachorrinho outra vez e acabaste por adormecer ao meu colo enquanto falava contigo. Dorme bem meu Dusty, já podes descansar. Estou aqui, estarei sempre aqui.”
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Esta manhã o Dusty esperou que eu acordasse para me pedir comida e festas. Quando saí para trabalhar deitou-se ao pé da casota e chamou-me com o olhar. Acariciei-lhe a cabeça, pedi-lhe que esperasse por mim como todos os dias lhe pedia e ele ficou a olhar enquanto me afastava. Depois, posso apenas imaginar, deitou-se no seu cantinho preferido, e adormeceu para sempre.
“Sabes, Dusty? Ainda bem que hoje está a chover.
Não era justo que o sol brilhasse num dia assim”