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Tinha acabado de descer do autocarro quando te vi parada no meio do passeio a acenar-me.
- Estavas à minha espera? - brinquei, enquanto te abraçava.
- Vi-te passar e resolvi esperar aqui. - Ajeitaste a mala no ombro e encaixaste o teu braço no meu: Era o mínimo já que te fiz levantar tão cedo ao fim-de-semana.
Ri-me: Sim, ó tu! Então onde é que vamos?
- Comer os melhores folhados de salsicha da tua vida. - respondeste com ar trocista. - É já aqui.
- E tinha que ser ao fim-de-semana?
Sorriste: É a melhor altura para ver os… locais. Sábado é o dia mais calmo da semana.
- Bem me parecia que não me trazias aqui só pelos folhados - disse aproximando-me de uma mesa
- Não! Aí não! É a mesa do Sr. Hipólito.
- Do senhor….?
- Já vais perceber. Bom dia, Sr. João! - cumprimentaste
- Ora viva! Já há muito tempo que não aparecia por cá.
- Venho matar saudades - respondeste e inclinando a cabeça na minha direcção acrescentaste: E trazer-lhe clientes
- E faz muito bem. Sentem-se onde quiserem que a Emília já lá vai atender.
- Vamos para o canto onde podemos ver a sala toda - sussurraste indicando uma mesa.
Sentámo-nos. Uma rapariga nova aproximou-se sorrindo com um prato onde fumegavam os famosos folhados e pedimos os cafés.
- Prova! Cuidado que estão quentes. São ou não são deliciosos?
- São simplesmente perfeitos! – disse eu quando consegui falar – Tinhas razão.
Uma idosa apoiada na bengala entrava no café e sentou-se numa mesa a meio da sala, cumprimentando toda a gente.
- É a D. Julieta. Deve ser uma das moradoras mais antigas aqui da rua. Toma sempre o mesmo pequeno almoço: um galão e um pacote pequeno de bolachas. Molha as bolachas uma a uma no galão antes de as comer. Diz que é por causa dos dentes que já não tem mas quando os tinha fazia a mesma coisa.
- Conheces a D.Julieta?
Olhaste-me surpresa: Toda a gente conhece a D.Julieta. Foi ela que iniciou quase todos os rapazes do bairro.
- Iniciou?
Soltaste uma gargalhada: Sim. A D.Julieta foi durante muitos e muitos anos uma empenhada fornecedora de serviços sexuais. Seguiu as pisadas da mãe. Ninguém diria, pois não? E acredites ou não é das pessoas mais respeitadas aqui no bairro.
Os meus olhos foram atraídos para uma figura magra que acabara de se sentar.
- O Sr. Hipólito, presumo? - perguntei
Assentiste com um sorriso: O Sr. Hipólito, claro! Não te disse que era a mesa dele?
Observei-o disfarçadamente: Parece que veio de um funeral.
- E parece-te muito bem porque o Sr. Hipólito é… cangalheiro! - replicaste rindo - É o dono da funerária no quarteirão ao lado. Queres que te diga o que vai comer? Repara na loiça que a Emília lhe pôs na mesa.
- Sopa?
Riste-te: Papa! A Emília vai trazer a caixa da papa, um copo com leite quente e um café. Ele faz a papa com metade do leite e junta o café ao resto do leite. E come sempre da mesma maneira: duas colheres de papa seguido de um gole no café com leite.
Suspiraste.
- Há anos que estas duas alminhas tomam o pequeno almoço aqui. Nunca os vi falarem um com o outro, sabias? Bom dia, até logo, um aceno com a cabeça mas nada mais. Todos os dias, à mesma hora, sentam-se em mesas vizinhas, comem sempre a mesma coisa, falam até com outras pessoas, mas nunca os vi trocar uma palavra ou um olhar. Diz-se que quando eram adolescentes estiveram apaixonados e tentaram fugir para casar. Iam para França onde a D.Julieta tinha uma prima. O Hipólito pai apanhou-os em Santa Apolónia e estragou-lhes os planos. Não faltava mais nada, o filho de um comerciante bem sucedido casar com a filha da rameira.
- E depois?
- Depois… nada. Nenhum deles fez frente aos progenitores. O Sr. Hipólito tomou conta do negocio do pai e a D.Julieta…
- Tomou conta do negocio da mãe - concluí
Assentiste com a cabeça sorrindo.
- Nunca deixaram o bairro. Ele podia ter vendido a funerária, ela podia ter partido mas optaram por ficar aqui. Nunca casaram, não tiveram filhos, vivem nas mesmas casas onde nasceram e segundo sei nunca estiveram fora mais do um dia ou dois. E todas as manhãs tomam o pequeno almoço juntos. A mulher da Vida e o homem da Morte, lado a lado numa leitaria de bairro. Uma triste mas bonita história de amor.
- História de amor? Achas?
- Para o saber de certeza teria que lhes perguntar, mas estou convencida que esta história de amor já estava escrita muito antes deles nascerem. Até tu concordarias se soubesses tanto como eu.
- E o que é que eu ainda não sei?
O teu olhar iluminou-se triunfante. Debruçaste-te sobre a mesa e a tua voz soou doce como um beijo.
- Que o primeiro nome do Sr. Hipólito é... Romeu.
E eu sorri e acreditei em ti.
in "Leitaria do Bairro"
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Publicado em 16.04.2013, no "Chá das Cinco", uma história quase verdadeira da Leitaria do meu Bairro :-)