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O Abril que eu vivi

por Maria Alfacinha, em 25.04.14
(foto de Alfredo Cunha)

 

Tinha 13 anos e ainda mal largara o casulo confortável e seguro da infância. No estremunhar do acordar, enquanto uma mão – que ainda hoje não sei de quem era – me sacudia o sono, senti, muito antes de entender, a importância das palavras que quebravam o silêncio da manhã: revolução, acorda, militares, veste-te, rua, aulas. Saltei da cama sabendo já que o dia ia ser diferente e assim que entrei na cozinha soube, também, que a minha vida, a vida de todos os que eu conhecia, a vida de quem eu não sabia nada, tinha mudado para sempre.

O meu pai tinha desaparecido dizendo que ia para a Baixa onde, aparentemente, tudo se estava a passar. Todos os rádios da casa estava ligados, um em cada divisão, para que não se perdesse uma palavra, uma nota musical daquela marcha, desconhecida e estranhamente familiar, que parecia militar, repetida vezes sem conta e que pouco tempo depois já marcava o compasso dos nossos gestos e que, sem nos apercebermos, trauteávamos nos breves momentos em que as palavras se calavam porque já ninguém sabia o que dizer.

 

Fechados em casa, por precaução maternal, tínhamos apenas autorização para espreitar a rua que rapidamente ficou vazia, como se a vida tivesse escolhido outras paragens. Nas casas vizinhas, como na nossa, ficaram apenas as mulheres, guardiãs da normalidade, verificando as despensas, preparando refeições, mantendo as crianças debaixo de olho, acalmando idosos, doentes e grávidas, que não se sabia se iria faltar comida ou medicamentos e ninguém queria ter de chamar uma ambulância num dia assim. Quando alguém trouxe a notícia que um barco militar tinha as armas apontadas à cidade, a minha mãe ordenou que todas as janelas fossem abertas para que não se partissem caso houvessem explosões. Estávamos em Abril, ao fim da manhã o sol brilhava, mas tivemos que vestir casacos para suportar as correntes de ar.

 

De quando em vez a música que enchia aquele dia estranho e tão diferente de todos os outros dias, interrompia-se - Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas - e corríamos para os rádios sustendo a respiração a cada novo comunicado, os sorrisos abrindo-se a cada nova notícia, às rendições que se sucediam, à violência que já quase não temíamos, à desobediência das gentes que insistiam em não se fechar em casa. Ao fim do dia, o meu pai trouxe os primeiros jornais e os olhos brilhantes como eu nunca lhe tinha visto. Na lapela trazia um cravo vermelho e enquanto fingíamos que jantávamos - que a fome parecia já ter sido saciada – contou-nos a história do dia em que os militares encheram as ruas da minha cidade com armas que disparavam cravos.

 

Passaram 40 anos. Muitos dos que viveram aquele dia, já não se encontram entre nós. Começamos a ser poucos. Somos até menos do que seria suposto sermos. A memória dos homens é curta e quem se atreve a comemorar esta data com alegria, esperança e determinação começa já a ser considerado excêntrico, saudosista, retrógrado e até tonto. Daqui a 40 anos, serão ainda menos os que poderão testemunhar como foi. Cabe-nos a nós, que ainda nos lembramos, que ainda conseguimos – mesmo que por breves momentos – sentir os olhos a brilhar, recordá-lo e evitar que caia no esquecimento.

 

Temo que, se assim não for, um dia, Abril não seja mais do que um pretexto para meia dúzia de cerimónias oficiais, em palacetes desinfectados de emoção, com discursos mais ou menos vazios, temporizados por um guião protocolar, debitados por personalidades vestidas de igual que comportadamente fazem fila para se cumprimentar.

E esse não é o Abril que vivi.

publicado às 11:14

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