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Novembro 1967

por Maria Alfacinha, em 26.11.14

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Se eu dissesse que me lembro de tudo estaria a mentir. Há pormenores de que recordo até o cheiro, mas a maior parte da história só a sei de ouvir contar. Não é de estranhar: ia fazer 7 anos, e não estava presente nos locais onde tudo decorreu. Ficáramos sozinhos em casa, eu, o meu irmão e a Lucinda, uma adolescente que tomava conta de nós, os três esticados em cima da cama dos meus pais a ver televisão, uma prevaricação apenas possível porque a Lucinda era tão infantil como nós. Tenho a noção que era muito tarde, mas podiam ser apenas 9 da noite pois a essa hora já deveríamos estar deitados. Não estava inquieta ou assustada, não devia estar. O barulho da chuva era ensurdecedor, os meus pais e a minha irmã tinham saído a correr com ar preocupado, mas eu fazia anos dali a 4 dias e estava acordada fora de horas: nada devia ser mais delicioso nessa altura. O dia estava quase a nascer quando, já na minha cama, despertei com o regresso da família a casa. Lembro-me que a chuva abrandara, alguém veio espreitar à porta do quarto, vozes que sussurravam, o silêncio e de repente um estrondo imenso e a casa pareceu desabar.

 

O que então aconteceu está bem presente na minha memória. Os meus pais a arrancarem-nos da cama, a saída para a rua, o cheiro a fumo, a queimado e a pó, os vizinhos em pijama, em roupa interior. gente a gritar, o ar assustado de quem nos olhava, e nós a sermos metidos no carro embrulhados em mantas, o meu pai a conduzir tão depressa quanto podia por estradas estreitas onde nos cruzávamos com carros de bombeiros com as sirenes ligadas e por todo o lado havia lama e móveis na rua e pessoas sujas e o dia que nascia indiferente a tudo. Foi em casa de um familiar, fingindo que dormia, que ouvi o relato de tudo o que se tinha passado. A chuva tinha caído feroz sobre a cidade. A empresa onde o meu pai trabalhava tinha ficado submersa e perdera-se tudo. Era aí que os meus pais e a minha irmã tinham passado a noite, tentando salvar qualquer coisa que fosse. Quando os bombeiros os obrigaram a sair souberam das inundações em Algés onde os meus avós viviam numa cave.

 

A voz da minha mãe denunciava o medo e o horror da viagem. Na 1º de Maio havia mulheres de joelhos no meio da estrada pedindo que não passassem pois o movimento dos carros inundava ainda mais as casas. A linha do eléctrico entre Alcântara e Algés estava coberta de água e lama que entrava dentro do carro cobrindo-lhes os pés e eles só pediam aos céus que não subisse mais e o motor não parasse. Depois o meu avô não queria sair de casa, preferia morrer ali, a vida tinha perdido toda a importância. Foi a custo que o arrastaram, já pela janela, que a água tinha invadido as escadas. E quando finalmente chegaram a casa, surpresos por estarem todos vivos, acontecera o que ninguém poderia antecipar: um depósito de munições do Exército, demasiado perto das zonas habitacionais, de alguma forma explodiu e destruiu tudo à sua volta.

 

Não sei quantos meses demorou o nosso regresso a casa. Vi-a apenas uma vez. Sem janelas, as nossas coisas espalhadas pelo quintal, grandes plásticos cobrindo os móveis, a minha mãe a chorar enquanto recolhia peças de roupa para dentro de sacos e procurava sapatos que pareciam ter ficado todos sem par. Só lá voltei depois das obras. Era criança, fui poupada ao desespero daqueles tempos. Se as inundações eram a consequência de uma catástrofe natural, a responsabilidade da explosão deveria ter sido assumida pelo governo. Ouvi, muitos anos depois, que uma lei publicada à pressa tinha evitado o pagamento de indemnizações. O ganha-pão da família, a nossa casa, a casa dos meus avós, perdeu-se tudo. Por pouco perdi o meu pai, que na altura quase desistiu. Tinha 50 anos, dois filhos pequenos e ficara sem nada. A solidariedade de clientes, fornecedores e colegas fê-lo mudar de ideias e deu-lhe ânimo para recomeçar do quase zero.
Hoje sabe-se que nesses dias morreram centenas, se não milhares de pessoas.
Nós tivemos sorte.

publicado às 09:50

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