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Entrámos ao mesmo tempo. Tinhas-me visto ao longe e eu esperara por ti, pelo teu abraço. Sei sempre que me vais abraçar, não importa se tens pressa. Seja onde for que te veja, não limitas o cumprimento aos beijos rápidos a que a vida nos habituou. Os teus braços abrem-se para quem gostas e apertas-nos sincera contra o teu peito. Assim que entramos cumpres o ritual que já te conheço: acenas a quem está atrás do balcão, debruças-te sobre os mais velhos, acaricias as faces, as mãos ou os ombros daqueles por quem passas. Tocas todos os que te rodeiam. “Mas tu tens que mexer em toda a gente?” pergunto-te sorrindo, enquanto nos sentamos, tentando, sem sucesso, que a minha voz soasse a reprimenda. Ergueste o olhar de quase espanto, enquanto arranjavas espaço para o saco que carregas para todo o lado: “Mexo?” perguntaste. “Mexes!” confirmei rindo “Distribuíste festas pelas quatro mesas que passámos”. O teu olhar repetiu o caminho que fizéramos e atestou o meu cálculo: “Pois foi!” - o teu sorriso tornou-se traquina, quando te debruçaste sobre a mesa em tom de segredo - “Até há quem me ache estranha por causa disso...” e riste-te com gosto.
Com um gesto mudo pediste os nossos cafés e continuaste: “Achas-me pirosa?" Foi a minha vez de me rir: "Nem por isso, porquê?" O teu rosto estava quase sério, demonstração inequívoca que já tinhas pensado no assunto: "Sei lá! Por te dar o braço quando vamos na rua, por exemplo. Quando éramos adolescentes seria considerado piroso..." À nossa frente uma criança olhava-te curiosa por cima do ombro da mãe. Atiraste-lhe um beijo fazendo-a sorrir e esconder a cabeça, fingindo-se envergonhada. "Lembras-te da Teresa?" perguntaste "A minha colega de Liceu, lembras-te ?" A criança procurava-te com o olhar e tu escondias-te atrás das mãos, espreitando entre os dedos, alimentando a brincadeira que lhe provocava o riso. "Éramos inseparáveis. Íamos juntas para todo o lado. Parecíamos siamesas" continuaste sem esperar pela minha resposta "Acho até que chegámos a criar alguma... fama" acrescentaste, piscando o olho. "No entanto não nos atreveríamos a andar de braço dado na rua!" Trocei: "Mas tu nunca te importaste muito com o que os outros pensavam..." Levantaste a cabeça - a mesma cabeça que nunca baixas - orgulhosa: "É verdade. Aí está algo que eu posso dizer, com toda a certeza, que não mudei com a idade! Mas uma coisa era termos fama de lésbicas e a outra era sermos pirosas!" Soltaste uma gargalhada: "As coisas que nos preocupam quando somos adolescentes..."
Beberricaste o café em silêncio já perdida em pensamentos, e eu limitei-me a esperar a conclusão das tuas reflexões. “Sabes o que realmente me preocupa? Esta confusão que se instalou entre as pessoas. O assumir que os gestos de carinho têm, muito provavelmente, carácter sexual. A dificuldade em distinguir amor, luxúria e desejo." Um pequeno guincho interrompeu-te. A criança ria-se provocadora, num supremo esforço por recuperar a tua atenção. Sorriste-lhe e devolveste-lhe o aceno que te oferecia, enquanto se afastava ao colo da mãe. Ficaste a observá-las até saírem. “O medo... “ murmuraste quase como se falasses contigo mesma. Olhaste-me séria. “Há uns anos atrás não teria qualquer pudor em fazer uma festa aquela criança, beijá-la, pedir para a pegar ao colo. Hoje não me atrevo. Receio que a mãe se assuste, que me julgue capaz de lhe fazer mal. O medo instalou-se entre nós. E perdemos a inocência." Encolheste os ombros, sacudiste a cabeça e suspiraste: "Perdemos a inocência, mas ainda nos surpreendemos por já não sabermos Amar.”
E o sorriso que me ofereceste não conseguiu disfarçar a mágoa que sentias.
in "Leitaria do Bairro"