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"Beija-me", dizes-me, desvendando nos olhos um desejo maior que o da tua boca que manténs distante da minha. Sorris e o teu sorriso afaga-me, desenha o contorno do meu pescoço, desliza pelo meu ombro e repousa no meu peito, como se me tocasses. O comboio aproxima-se, pára, as portas abrem-se com um suspiro metálico e deixamo-nos empurrar, tu sempre segurando a minha mão, puxando-me para ti. E as gentes que entram, que forçam o meu corpo contra o teu, encaixam-me por baixo do teu casaco, a minha cabeça pouco acima do teu peito, o teu braço que descai e me rodeia, um arrepio percorre-me o corpo, e eu tremo, tento disfarçar, rio-me - "Bastava teres dito que me querias abraçar" - e tu baixas a cabeça, sussurrando em tom de quase queixa - "Não me beijaste..." - e eu ergo o rosto, devolvo-te o sorriso e mergulho nos teus olhos que me despem enquanto reflectem o desejo que me invade lentamente, a tua mão que descansa em curvas no meu corpo, o balanço da viagem que me empurra contra ti, o cheiro - meu Deus, o cheiro! - o teu cheiro que eu adivinhava, que não sei se é perfume, que se confunde com o meu, o teu cheiro que me embriaga, que me deixa zonza quando o misturo no teu olhar, e rodo sobre mim mesma, fecho os olhos e aconchego-me em ti, imaginando o teu beijo que não conheço.
Sinto-te. Sinto o teu cabelo que se mistura com o meu quando deixas descair a cabeça, roçando a tua boca na minha orelha, na minha face, a tua barba por fazer, e o meu coração que bate, bate tanto - “Deixa-te estar... não te mexas” - a tua voz grave suspirada junto ao meu pescoço, o teu calor, a tua mão na minha cintura, puxando-me, procurando o cós da camisola, o teu polegar que toca a minha pele, devagar, imperceptivelmente, e estremeço, o meu joelho bate na perna do homem de fato cinzento que se encontra à minha frente - “Desculpe...” - balbucio e adivinho o teu sorriso trocista, divertes-te com o que provocas em mim, espreitas por cima do meu ombro e a tua voz baixa - baixa, tão baixa - as tuas palavras que mal entendo - “Deixa-me ver o teu peito...” - e eu sinto que ele se retesa, cresce, orgulhoso, desafiante, roubando o pouco espaço que ainda era meu. O teu polegar, o teu polegar apenas, brinca com a minha pele e eu só penso no calor sufocante, e no meu coração que não abranda, que bate desordenado, que vejo a bater através da camisola, e que oiço, oiço-lhe as batidas abafando as conversas - bate tão alto, toda a gente o ouve, não é possível que não oiçam - marcando o ritmo a que o teu polegar dança na minha pele.
Olho-te de soslaio e maldigo o teu ar imperturbável, quase inocente. Reconheço esse leve trejeito nos lábios, discreto sinal do prazer que sentes, que não me escondes, que exibes por mim, só para mim. E a nossa estação que não chega, e os túneis que se sucedem, escuros, estonteantes, a tua respiração cada vez mais perto da minha nuca. E o teu polegar que me enfraquece, este arrepio que toma conta de mim, e tu falas, acho que falas, não sei o que dizes, talvez um qualquer carinho, uma obscenidade, só a minha pele te ouve, e as forças fogem-me, as pernas, não sinto as minhas pernas, ou sinto - sinto tanto, sinto tudo - e sustenho a respiração, tenho medo de gemer, sei que se respirar vou gemer, agarro o teu casaco, preciso de me agarrar, penso - ou já não penso - acredito que caio, que o comboio vai parar e eu não vou conseguir andar, vou ficar colada ao chão, como estou colada a ti.
(...)
Subimos as escadas, de mão dada, a correr. Um pouco mais à frente, a porta do cinema. "Chegámos a tempo" dizes. Obrigo-te a parar. Seguro-te a cara entre as minhas mãos: "Beija-me...". Sorris, abraças-me, e murmuras ao meu ouvido: "Vamos para casa"