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Um novo dia

por Maria Alfacinha, em 23.07.15

semeando-esperanca.jpg

Este novo emprego não me diz nada, mas sou bem tratada, pese embora as minhas colegas viverem num universo repleto de receitas de culinária e enredos de novelas. No início, fazia um esforço para não demonstrar o quão me assustavam as suas vidinhas e como não as queria para mim e calava-me, mergulhando nas tarefas ou mantendo-me afastada das conversas, sem expressar opinião ou fazer comentários. Elas não se importavam com o meu silêncio. Assumiam que não partilhava os mesmos interesses porque estava só e, como tal, não tinha para quem cozinhar e, porque estava só, me deviam doer as peripécias amorosas dos seus personagens favoritos. Assumiam e eu não as contrariei. Estou a ser mazinha, eu sei. São gente boa que, à sua maneira, até se preocupa comigo. Quando descobriam numa revista uma daquelas receitas-para-quem-vive-só, traziam-me o recorte – pensei logo em ti, quando a vi – que eu agradecia sempre, mesmo sabendo que o mais certo era nem sequer a experimentar, caso não fosse daquelas coisas que se comem ao balcão da cozinha e não valia o trabalho da loiça que ia sujar. Mas como é que lhes ia explicar, sem as magoar, que não queria saber de receitas, de produtos para as nódoas e que não precisava do olhar de comiseração com que me brindavam se eu calhasse a cair doente – ai que maçada! e sem ninguém que trate de ti – ou os convites piedosos – não ficas sozinha no Natal, nem penses! – o encolher de ombros resignado, mas descrente, quando dizia que estava muito bem sozinha? Acabei por inventar um namorado. Foi uma ideia brilhante e felizmente, até hoje, ainda ninguém reparou que ele vem a casa exactamente quando me quero escapar de algum programa ou comemoração que não me interessa. Deixei de fazer parte das coitadinhas e nunca mais questionaram as minhas ausências ou tentaram apresentar-me os primos dos maridos que ainda estavam solteiros, todos muito bons homens, cheios de azar na vida, mas com corações de ouro.

 

Por vezes, quando ao fim do dia chego a casa, e me sento à janela com o Pompeu, quase sinto remorsos das histórias que invento só para não ter que lhes explicar que finalmente tenho paz na minha vida, que consegui curar as mazelas que o meu ex me deixou, as do corpo e principalmente as da alma, que as conversas divertidas sobre os ciúmes dos maridos me recordam as perseguições, as esperas que ele me fazia, os telefonemas constantes – onde estás? já saíste? – a minha roupa interior remexida, espalhada pela casa – não conheço estas cuecas – exposta a quem quer que entrasse, atiradas à minha cara – cheira-as! achas que consegues lavar o cheiro que deixas quando te esfregas neles? - as poucas amigas que fizera acusadas de me esconderem os amantes, afastadas com medo que ele lhes batesse como me batia a mim. Sempre com cuidado, nunca na cara, nunca nos braços. Nas pernas não havia problema que os meus vestidos tinham desaparecido misteriosamente e as calças encobriam as marcas do amor que ele me tinha. Que tinha, claro, um amor louco, que nunca sentira por ninguém, como repetia a cada murro que me roubava a respiração, a cada empurrão, a cada pontapé – nem sabes cozinhar tudo o que fazes é merda que nem para os porcos serve – quando me arrastava pelos cabelos até à cozinha, e me mostrava os tachos, as loiças, despejava as gavetas no chão – para que é que gastei dinheiro nisto? – e eu encolhida, sem falar, sem me atrever a chorar, a gemer, à espera que ele se cansasse e me deixasse em paz. Uma noite, enquanto ele ressonava estendido no sofá, vesti o casaco, peguei na mala e saí. Corri a cidade sem destino, tentando esquecer as dores que não me deixavam pensar. Cruzei-me com um polícia e pedi-lhe que me levasse a uma esquadra. Apresentei queixa. Telefonei a uma amiga que me deu abrigo. No dia seguinte, enquanto ele prestava declarações, duas mulheres polícia acompanharam-me a casa onde ensaquei roupa, sapatos, as fotos dos meus pais e pouco mais. Mudei de cidade, às escondidas, para que ele não me encontrasse. Um dia telefonaram-me. Tinha morrido, atropelado quando atravessava a rua, à porta da casa que tinha sido nossa. Fiquei viúva. Até na morte me bateu, deixando-me para sempre ligada a ele. Mudei outra vez de cidade. Tenho um emprego que não me diz nada, um namorado inventado e o Pompeu, um gato de rabo cortado que um dia veio atrás de mim. Como é que eu posso explicar às minhas colegas que estou tão melhor assim?

 

Mas de vez em quando a esperança visita-me. Há umas semanas atrasei-me nas tarefas matinais e acabei por perder o transporte habitual. Não me preocupei muito. Em vez de chegar ao emprego 15 minutos antes da hora, ia chegar só 5. Quando entrei procurei, ansiosa, um lugar perto de uma janela aberta. Dois lugares, duas janelas. A passageira que ia à minha frente escolheu o primeiro, que era bem mais acessível, e apressou-se a fechar a janela. Para alcançar o lugar que restava teria que incomodar pelo menos 10 pessoas mas nem hesitei: pedindo licença à esquerda e à direita, avancei destemida obrigando toda a gente a desviar-se e até o passageiro que estava em frente ao lugar que eu queria, se encolheu para me dar espaço. Agradeci-lhe com um sorriso e justifiquei-me: “É a única janela aberta…” Felizmente calei-me, porque ia comentar que não percebia porque é que as pessoas fecham sempre as janelas e ele disse exactamente o mesmo, quase palavra por palavra. Pensando como teria sido estranho o nosso coro não ensaiado, optei por responder com um sorriso e dedicar a minha atenção à paisagem, deixando-o entregue às palavras cruzadas que, sei agora, faz todas as manhãs. No dia seguinte voltei a atrasar-me. Desta vez, nem procurei e fui directa ao mesmo lugar. A janela aberta, o meu novo companheiro de viagem e o lugar vazio como se tivesse à minha espera – gosto de pensar que foi ele que o guardou para mim – uma troca de sorrisos - bom dia, bom trabalho, até amanhã - e desde então tem sido sempre assim. Hoje quase não chegava a horas. Tento perceber se ele conseguiu guardar-me o lugar. Disparate, não é? Mas lá estavam todos: a janela aberta, o lugar vazio e ele de jornal pousado em cima da pasta e caneta na mão. Não me lembro de ter pedido licença para passar mas aqui estou e ele tão embrenhado nem me ouviu chegar, nem percebe que está a pensar alto - Horizontal 3, 4 letras? - Foi o que percebi... Gosto de palavras cruzadas. Acho que me vou oferecer para o ajudar. Afinal, é um novo dia.

in (...)
o outro lado

publicado às 17:41


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