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Ah, bom dia, estava a falar comigo? Estava tão distraída a pensar no que aconteceu, que nem percebi que já tinha chegado a minha vez. Não, não sou passageira. A situação é a seguinte: vim buscar uma pessoa de família e soube, entretanto, que tinha perdido o avião, e que só chega daqui a duas horas. Como não valia a pena andar para trás e para a frente, resolvi ficar por aqui e, para me entreter, tenho andado a ver quem chega, e a imaginar-lhes as viagens que fizeram. Coisas minhas, não interessa. Sei é que, entre imaginar histórias e o que aconteceu ao meu familiar, devo ter-me distraído e perdi uma coisa. Na verdade nem sei se estou no sítio indicado, mas, quem sabe, talvez me possa ajudar. Perdi-o aqui, sim, esta manhã. Cheguei cedo e sei que o trazia comigo, mas agora não o encontro. E não é normal perder alguma coisa, ou talvez deva dizer que não perco coisas normais. Quer dizer: não sou daquelas pessoas que perde os óculos, a carteira ou as chaves de casa. Já me esqueci de qualquer uma dessas coisas muitas vezes, mas sei sempre onde estão. Chapéus-de-chuva, já é outra conversa, passo a vida a perdê-los, mas não é o que acontece a toda a gente? De resto não me lembro de perder nada realmente importante na minha vida. Mas há perder e perder, não é?
Desculpe, ponho-me a divagar e perco o rumo à conversa. Aqui entre nós, perco-me com facilidade e gosto de me perder. Perder-me nas tarefas, perder-me em pensamentos, perder-me de riso. Já por várias vezes perdi o pé quando estava a nadar, por exemplo. Mas dava umas braçadas e lá o achava no sítio onde devia estar. Perder a cabeça também já me aconteceu, e todos os dias, mas todos os santos dias, perco a paciência. Perder tempo é que não é comigo. Posso desperdiça-lo, esbanja-lo mas perder nunca o perco, nem mesmo quando o dou como perdido. Perder os sentidos, só uma vez me aconteceu, e não é nada agradável, devo dizer. É quase tão mau como perder a alegria, que neste caso estamos conscientes do que perdemos e, quando perdemos os sentidos, só o sabemos quando os recuperamos. E como vê, de vez em quando também perco o fio à meada e ainda perco o seu tempo também. Vamos, então, ao que interessa: gostaria de saber se encontraram um coração. Não um coração qualquer, mas o meu coração.
Se é uma jóia? Obrigada, é muito simpático em pensar que é uma jóia. Para mim é, claro. Tenho-o desde que nasci, pode-se dizer que me foi oferecido pelos meus pais, e ao fim e ao cabo tem sido ele que tem guiado a minha vida. É um coração bonito, perdoe-me a vaidade, enfeitado com pequenas cicatrizes cada uma com um amor por desvendar. Mas não pense que é um coração fácil. Já me deu alguns desgostos, digo-lhe eu. Quando se perde de amores não há nada a fazer. Perde o bom-senso, perde o apetite, perde o sono, perde o medo, eu sei lá! Quantas vezes perde a prudência e acaba por ser roubado. Não é o caso, ou estaria no balcão da Polícia e não aqui. Sei sempre quando me roubam o coração e hoje não foi isso que aconteceu. Suspeito que estivesse demasiado leve e tenha ido atrás de algum sonho. É sinal que está feliz, não é? Um coração pesado não persegue sonhos. Encolhe-se num canto e espera que o esqueçam.
Não me pode ajudar? Não se preocupe, valeu pela boa vontade. Quem me manda a mim perder tanta coisa estranha? Fazemos assim: da próxima vez que perder o chapéu-de-chuva, perco-o aqui. Sim, também perco coisas porque quero e, por vezes, faço-o apenas para agradar a alguém. Entretanto, se vir por aí um coração perdido, diga-lhe que estou lá fora a tentar perceber como se consegue perder um avião. Isso é que ser distraída!