Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Nasci numa cidade casada com o sol, numa rua cantada num Fado antigo e criei-me num bairro com cheiro a suor, brincando em jardins sob telhados quebrados, com avós emprestados de olhos brilhantes, filósofos de fadas com colos de amor. Ainda menina, a caminho de já não ser, encorpei nas noites de risos e prosa, aprendendo em pressas a vida que não queria e descobrindo sonhos, à beira de um rio de luzes e cor. E hoje mulher, por direito e idade, é pela madrugada que a namoro e escrevo quem sou, em folhas riscadas, como pautas de música, cobertas de rimas que aprendi de cor.
Nasci em Lisboa num dia de sol, num fim de Novembro que cheirava a castanhas. Cidade-Mãe das mulheres de quem vim, de janelas bordadas nas colinas cansadas de tanto labor. Lisboa-irmã, também minha Mãe, que me acarinhou vontades, limpou-me as lágrimas e embalou os meus amores. Lisboa amante, e sempre mulher, onde me deitava, tardava a noite, em leitos de linho branco, com cheiro a sabão de cravos e almofadas de manjericos. Cidade bonita, senhora e menina, de prédios galantes erguidos na ânsia larga das avenidas. Lisboa, serena e doce nas tardes de Verão, dos livros devorados em bancos de jardim, o tempo esquecido nas margens dos lagos, lar de cisnes e patos em alegre grasnar. Lisboa varina atrevida, fadista e brejeira, que acolhia nos braços e consolava com beijos quem morria de amor.
Foi nessa Lisboa que um dia nasci, num princípio de Inverno que enganou S. Pedro, brindando a cidade com a carícia do sol. Hoje moderna, e cheia de pressa, de ruas repletas de gente que acode à urgência da vida que lhes escorre entre os dedos. Lisboa de varandas vazias das sardinheiras criadas em amor, agora desenhadas, em elegante desapego, por quem não lhe conhece a alma. Cidade maltratada, de ventre rasgado fedendo a lixo e obras paradas, roubando-lhe a beleza num fado de dor. Lisboa vazia dos filhos que já não tem, presa em vaidades que não as suas, pejada de estranhos que a atropelam e aviltam sem cautela ou dó. Mas Lisboa sabe - contaram-lhe as gaivotas que a visitam pela manhã - que mesmo perdida, suja e esquecida, qual mulher da vida, desprezada e dorida, será eternamente menina, e linda e pura, aos olhos de quem nela nasceu e (para) sempre a amou.