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Pecados antigos

por Maria Alfacinha, em 02.11.15

pecados antigos

 

Cresci numa rua onde não havia meninas da minha idade. As horas de liberdade eram passadas no quintal ou no passeio, entre jogos de apanhada e campeonatos de berlinde, ringue, carica ou bola, transformando os cães e gatos em cavalos e tigres, lançando papagaios, quando não era dia de disparate e inventávamos pára-quedas de papel que testávamos - invariavelmente sem sucesso - atirando-nos de um dos terraços, ou imitando os heróis de banda desenhada e dos filmes de Domingo à tarde, subindo às árvores mais altas dos quintais lá do bairro. Com tais actividades era raro o dia em que não recebíamos mais uma condecoração de mercurocromo, por vezes uns alinhavos na farmácia mais próxima - que devia ser encantada pois os caminhos para lá chegar tornavam-se tão mais longos quanto maiores fossem as dores que sentíamos - ou uma ordem de marcha para a cozinha onde nos esperavam as cópias e listas de palavras difíceis do livro de leitura, sob o olhar atento da mãe, e a tão famosa promessa: “E quando o teu pai chegar, falamos melhor!”

 

Por tudo isto, quando um dia fui escolhida para protagonizar um dos momentos musicais da festa que a escola organizava no final do ano lectivo - para demonstrar aos babados progenitores como tinha sido bem empregue o dinheiro despendido na educação dos rebentos - a interpretação de uma canção de embalar que metia bonecas e vestidos e sapatos brilhantes e laços nos cabelos, o meu coração cresceu de tal forma que cheguei a temer que saísse disparado do peito. Logo eu, que coleccionava cicatrizes e conhecia todas as formas de conseguir esfoladelas e nódoas negras... Valeu-me a voz e as tranças, já na altura fora de moda, mas de que eu tinha tanto orgulho, e que, para completar a minha felicidade, até eram mencionadas na letra da canção. Ah, tudo teria que ser perfeito e nas semanas que se seguiram, as estimulantes brincadeiras de rua foram substituídas por intermináveis ensaios da coreografia, permitindo ao mesmo tempo que as mazelas sarassem e não fossem substituídas por outras que maculariam a imagem pretendida. Mas a vida nem sempre é justa. Quando faltavam poucos dias para o meu grande momento uma febre súbita, manchas estranhas pelo corpo todo e o diagnóstico cruel: escarlatina. Entorpecida pela doença, resignei-me sem grande vontade à minha pouca sorte.

 

A história acabaria aqui não fosse ter chegado aos meus ouvidos que seria substituída pela Cristina-Magalhães-Come-Gatos-Come-Cães, assim chamada por ser a única em toda a escola - em todo o Universo, com certeza! - conhecedora de um qualquer passe de mágica que lhe permitia manter as meias sempre pelo joelho, os cadernos impecáveis e os dedos livres de manchas de tinta. Tal notícia era pior que qualquer doença e estou convencida que deve ter sido a principal responsável pela minha rápida recuperação pois, contra todas as expectativas, no dia da festa nem o médico encontrou qualquer razão para me manter em casa. E quando chegou a hora daquela que seria a minha canção, longe das outras crianças, sob camadas de roupa quente demais, fiz do fundo da sala o meu palco e valendo-me da voz com que nasci, troquei as voltas ao destino e cumpri o sonho que me tinham oferecido.
Hoje, quase uma vida depois, ainda penso no que a pobre Cristina deve ter sentido.

 

in "Histórias de menina"

publicado às 10:27


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