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Cresci numa rua onde não havia meninas da minha idade. As horas de liberdade eram passadas no quintal ou no passeio, entre jogos de apanhada e campeonatos de berlinde, ringue, carica ou bola, transformando os cães e gatos em cavalos e tigres, lançando papagaios, quando não era dia de disparate e inventávamos pára-quedas de papel que testávamos - invariavelmente sem sucesso - atirando-nos de um dos terraços, ou imitando os heróis de banda desenhada e dos filmes de Domingo à tarde, subindo às árvores mais altas dos quintais lá do bairro. Com tais actividades era raro o dia em que não recebíamos mais uma condecoração de mercurocromo, por vezes uns alinhavos na farmácia mais próxima - que devia ser encantada pois os caminhos para lá chegar tornavam-se tão mais longos quanto maiores fossem as dores que sentíamos - ou uma ordem de marcha para a cozinha onde nos esperavam as cópias e listas de palavras difíceis do livro de leitura, sob o olhar atento da mãe, e a tão famosa promessa: “E quando o teu pai chegar, falamos melhor!”
Por tudo isto, quando um dia fui escolhida para protagonizar um dos momentos musicais da festa que a escola organizava no final do ano lectivo - para demonstrar aos babados progenitores como tinha sido bem empregue o dinheiro despendido na educação dos rebentos - a interpretação de uma canção de embalar que metia bonecas e vestidos e sapatos brilhantes e laços nos cabelos, o meu coração cresceu de tal forma que cheguei a temer que saísse disparado do peito. Logo eu, que coleccionava cicatrizes e conhecia todas as formas de conseguir esfoladelas e nódoas negras... Valeu-me a voz e as tranças, já na altura fora de moda, mas de que eu tinha tanto orgulho, e que, para completar a minha felicidade, até eram mencionadas na letra da canção. Ah, tudo teria que ser perfeito e nas semanas que se seguiram, as estimulantes brincadeiras de rua foram substituídas por intermináveis ensaios da coreografia, permitindo ao mesmo tempo que as mazelas sarassem e não fossem substituídas por outras que maculariam a imagem pretendida. Mas a vida nem sempre é justa. Quando faltavam poucos dias para o meu grande momento uma febre súbita, manchas estranhas pelo corpo todo e o diagnóstico cruel: escarlatina. Entorpecida pela doença, resignei-me sem grande vontade à minha pouca sorte.
A história acabaria aqui não fosse ter chegado aos meus ouvidos que seria substituída pela Cristina-Magalhães-Come-Gatos-Come-Cães, assim chamada por ser a única em toda a escola - em todo o Universo, com certeza! - conhecedora de um qualquer passe de mágica que lhe permitia manter as meias sempre pelo joelho, os cadernos impecáveis e os dedos livres de manchas de tinta. Tal notícia era pior que qualquer doença e estou convencida que deve ter sido a principal responsável pela minha rápida recuperação pois, contra todas as expectativas, no dia da festa nem o médico encontrou qualquer razão para me manter em casa. E quando chegou a hora daquela que seria a minha canção, longe das outras crianças, sob camadas de roupa quente demais, fiz do fundo da sala o meu palco e valendo-me da voz com que nasci, troquei as voltas ao destino e cumpri o sonho que me tinham oferecido.
Hoje, quase uma vida depois, ainda penso no que a pobre Cristina deve ter sentido.
in "Histórias de menina"