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Era tarde quando finalmente me sentei. A noite arrefecera e a chuva caía miudinha, escorrendo silenciosa nos vidros despidos das cortinas que os costumam enfeitar. Na manta que serve de tapete, esticados em frente ao aquecedor, os cães gozavam o sossego de mais um dia que chegava ao fim, com aquele ar sereno que sucede à excitação do meu regresso a casa. O enleio morno da sala, a luz baixa que deixava sombras nas paredes, a televisão sem som que esperava as notícias do dia e à minha frente uma chávena de chá fumegante e aroma doce lembravam serões antigos e traziam uma paz, uma calmaria que reconheci como se fosse um amigo daqueles que vivem dentro do nosso peito. Dei por mim a sorrir um sorriso de menina, mágico de estrelas e sonhos lindos: “Está na altura de o ir buscar...”
Puxei pela memória para saber onde o tinha guardado. Todos os anos o arrumo num sítio diferente, de propósito, quase como se o escondesse, para que a aventura comece assim, uma espécie de caça ao tesouro, um jogo de criança que inventei já adulta, e que me prepara o coração, deixando-o inquieto, ávido de algo que a ciência se recusa a entender, como se fosse dona da verdade, como se o que não se pode medir ou pesar ou analisar em laboratório, não fosse real. São tristes os cientistas... Como é que se pesa a Generosidade, como é que se mede o Carinho, qual é a composição química do Amor? O tamanho do Sonho calcula-se em quê? Metros? Quilos? Ri-me da ignorância de quem fez da Ciência um guia para a Vida e continuei a minha busca. Na gaveta da cozinha, no fundo do roupeiro, atrás dos livros no escritório, debaixo da cama. Nada. Sentei-me nas escadas tentando concentrar-me: “Onde é que o terei metido?” Como em resposta, atrás de mim, um barulho quase imperceptível, um ruído murmurado, igualzinho ao restolhar das folhas que caem secas nos dias de Outono. Virei-me na direcção do som. O quarto estava às escuras, os cães dormiam ainda e não havia mais ninguém em casa. Sustive a respiração. Novamente um som estranho, um gargalhar travesso que julguei fruto da minha imaginação. “Que coisa! Queres ver que tenho outro rato cá em casa?” pensei levantando-me e acendendo a luz do quarto. E foi então que o vi. Caído no chão, um duende de brincar, e na prateleira, agora em destaque, o caderninho que eu procurava.