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Nenhuma boa acção fica impune II

por Maria Alfacinha, em 24.02.16

ENGANO.jpg

 

A noite de Domingo estava quase no fim. Cristina acabara de arrumar a cozinha e preparava-se para se enroscar no sofá com um livro na mão, quando notou uma grande agitação na rua. Gente que corria, vozes exaltadas. Abriu a porta da rua e percebeu que havia um incêndio ao fim da rua. Pegou no casaco e saiu a correr. Era a casa da D. Hermínia, uma senhora de idade que vivia sozinha e que, naquele momento, olhava em desespero as chamas, amparada por uma vizinha. Aproximou-se.

 

— D. Hermínia! Está ferida?

 

— Ai Cristininha. O meu Pantufa está lá dentro e ninguém me deixa ir lá dentro buscá-lo!

 

Cristina olhou rapidamente para a casa:

 

— Claro que não, D. Hermínia. Onde é que ele ficou?

 

— Na cozinha. O meu sobrinho tinha acabado de sair lá de casa e eu fechei o Pantufa na cozinha para comer. Quando voltei à sala, a D. Isabel estava a bater-me à porta a dizer que havia chamas no primeiro andar. Olhe, puxou-me cá para fora e já não pude ir buscar o Pantufa.

 

Cristina despiu rapidamente o casaco e pô-lo por cima da senhora:

 

— Parece que ainda não há chamas lá atrás. Deixe ver se o tiro de lá – e correu pelo pequeno quintal, desaparecendo nas traseiras da casa.

 

Os vizinhos, alertados pelo barulho, tinham saído para a rua e afastavam os carros para dar passagem aos Bombeiros que, entretanto, chegavam com grande alarido. D. Hermínia recusava-se a sair do mesmo sítio, agora duplamente aflita com o gesto de Cristina. Os Bombeiros ligavam as mangueiras às bocas-de-incêndio mais próximas e tentavam afastar os curiosos.

 

— Está alguém dentro de casa? – perguntou alguém.

 

A vizinha que amparava D. Hermínia respondeu sem saber muito bem a quem.

 

— A D. Cristina foi lá dentro buscar o cão.

 

Ouviu-se um resmungo.

 

— Raios partam as velhas mais os animais. Só dão trabalho!

 

Viraram-se algumas cabeças tentando perceber quem tinha falado. Um pouco afastado da multidão estava Sérgio, o sobrinho de D. Hermínia, de mãos nos bolsos e atitude desafiadora. Um homem aproximou-se dele.

 

— É hoje que lhe parto a cara! Já perdemos a paciência há muito!

 

D. Hermínia mantinha-se de olhos fixos na casa.

 

— Não lhe liguem! – pediu lacrimosa – Esse desgraçado é mais infeliz do que possam pensar.

 

O homem voltou-se para a idosa.

 

— Não o defenda, D. Hermínia! É um chulo, não entende? Vive à sua conta e ainda vem para aqui provocar?

 

D. Hermínia olhou suplicante para o homem que falava.

 

— Seu Zé, ele é filho da minha pobre irmã. Nunca teve sorte na vida.

 

O homem ia responder, mas foi interrompido por outra vizinha.

 

— Ali vem ela! – gritou, apontando para a casa.

 

Cristina surgira por trás do fumo com uma trouxa nos braços. Os vizinhos aproximaram-se para a ajudar e Cristina entregou a trouxa à idosa.

 

— Pronto, D. Hermínia! Aqui está o seu Pantufa. O pateta estava debaixo da mesa e não queria sair. Tive que o embrulhar no casaco para que ele não me mordesse.

 

Já nos braços da dona, o Pantufa ainda a tremer, não escondia a sua alegria lambendo o rosto da dona.

 

— Eh! Esse casaco é meu! – gritou Sérgio, puxando o blusão com tanta força que D. Hermínia quase caiu.

 

Seu Zé, já irritado, desferrou-lhe um murro.

 

— Irra homem! Você faz perder a paciência a um santo.

 

Sérgio ficara caído no chão esfregando a cara onde lhe tinham batido. Um polícia aproximara-se e segurara o braço de José:

 

— Então, o que se passa aqui?

 

Sérgio erguia-se com dificuldade.

 

— Ainda bem que está aqui, senhor guarda. Este tipo agrediu-me sem razão nenhuma.

 

O polícia olhou-o irónico.

 

— Não foi isso que me pareceu. Pegue no casaco e vá à sua vida.

 

Sérgio apanhou o casaco do chão resmungando. O polícia debruçou-se.

 

— Isto é seu?

 

Na mão tinha um fio de ouro grosso com um medalhão. D. Hermínia gritou:

 

— O meu fio!

 

Sérgio encolheu os ombros.

 

— Não tenho nada a ver com isso!

 

O polícia ajeitou o chapéu, e voltou-se para Hermínia.

 

— Este fio é seu, minha senhora?

 

D. Hermínia assentiu balbuciando:

 

— É sim! É o fio da minha avó.

 

Os vizinhos rodearam Sérgio.

 

— Este homem é um traste, senhor guarda. Explora a tia e, pelos vistos, também a rouba.

 

O polícia guardou o fio no bolso e, pegando num braço de Sérgio, encaminhou-o na direcção da outra rua.

 

— Resolvemos isso na esquadra – e, voltando-se para a D. Hermínia, – é melhor vir também connosco. Pode descansar um pouco, enquanto os Bombeiros acabam o seu trabalho.

 

Cristina voltara para casa. Os dias seguintes decorreram sem grande sobressalto. Os filhos de D. Hermínia tinham vindo ajudar a limpar os estragos e salvar o pouco que restara. Tinham descoberto o guarda-jóias aberto e a pobre senhora confirmara que tinham desaparecido a maior parte das suas jóias. Sérgio, embora negasse o roubo, tinha sido preso. D. Hermínia, depois de passar umas semanas em casa de um dos filhos, optou por se mudar para o lar mesmo ao lado do bairro onde tinha passado quase toda a vida. Cristina ofereceu-se para ficar com o Pantufa e, todas as semanas, iam visitar a antiga dona ao lar. Cerca de um ano depois, Hermínia morrera serenamente. Cristina recordava uma das últimas visitas que lhe tinha feito. Era Natal e a idosa, já muito frágil, tinha toda a família à sua volta e chamara-a para ao pé de si:

 

— Cristininha. Já falei com os meus filhos e eles concordam comigo.

 

 Pegou no pequeno guarda-jóias que estava na mesa ao seu lado e estendeu-lho:

 

— Quero que fique com isto. Não há mulheres na família que as queiram usar e eu sei o quanto gostava de as admirar.

 

Cristina tentara recusar, mas a vontade da senhora e a concordância dos filhos fizeram-na pegar na caixa. Abriu-a devagar sob o olhar feliz da idosa:

 

— Muito obrigada, Hermínia. Que belíssima prenda!

 

— Só tenho pena que tenham desaparecido tantas. Aquele malandro devia andar a roubar-me há muito tempo – suspirou e acrescentou com um sorriso travesso – mas olhe, se ele não as tivesse roubado, se calhar os meus filhos não deixavam que ficasse com elas! – E riu-se com vontade, sob os protestos dos filhos.

 

Poucos dias depois morreu. Uma semana após o funeral, Cristina pegou no guarda-jóias e dirigiu-se à garagem. Afastou algumas caixas e, por trás delas, tirou um pequeno embrulho feito com panos de cozinha. Desenrolou-o cuidadosamente, revelando algumas jóias. Uma a uma colocou-as na pequena caixa, fechou-o e colocou-o dentro da mala. E nessa mesma tarde tinha entrado pela primeira vez na sala onde agora se encontrava.

 

Castro e Silva pigarreara, interrompendo-lhe os pensamentos. Em cima da mesa estava um largo estojo com a tampa levantada, expondo as jóias da D. Hermínia. Cristina aproximou-se e suspirou tão profundamente que Castro e Silva não conseguiu evitar um sorriso.

 

— Mudou de ideias?

 

Cristina retribuiu-lhe o sorriso:

 

— Não – respondeu, pegando num par de brincos com pérolas falsas. – Vou apenas ficar com estes brincos como recordação.

 

Estendeu a mão a Castro e Silva:

 

— Muito obrigada por tudo. Refaça por favor as contas e avise-me quando toda a documentação estiver pronta, sim?

 

Castro e Silva acompanhara-a até à porta do elevador que, mais uma vez rangeu durante todo o trajecto até ao rés-do-chão. Cristina vestiu o casaco e abriu a pesada porta. Respirou fundo e sentiu o ar frio de um Inverno que lhe parecia agora menos rigoroso. Na mão ainda conservava os pequenos brincos. Olhou-os demoradamente e pensou:

 

— Como é que se costuma dizer? Nenhuma boa acção fica impune?

 

E, soltando uma gargalhada, deixou cair os brincos no bolso do casaco e desceu a rua em passo decidido.

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