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Dezembro, 24. De camisola vermelha como a época exige, foi buscar a mãe para passarem a noite na casa da irmã mais velha. Ainda na escada sentiu o aroma a fritos e açúcar e canela que sempre perfumavam aqueles dias. Abriu a porta com cuidado, não fosse tropeçar nos sacos e saquinhos e saquetas dispostos no hall de entrada, prontos para seguir viagem. Dirigiu-se à cozinha onde a mãe cobria com folhas de alumínio, película aderente e ainda panos da loiça as travessas de arroz doce e fatias douradas que fazia como ninguém. Maria Adelaide! – ralhara – Ainda não estás vestida? E a mãe que se desfazia num mimo indisfarçável quando ela a tratava assim, estendeu-lhe um tabuleiro almofadado com mais panos de cozinha, onde dispôs com cuidado as travessas ainda quentes: Despacha-te a pôr tudo no carro que eu fico pronta num instante. Obedeceu, reclamando pelo atraso – que nem pareceria dia de festa se não reclamasse da desorganização da época - carregou o elevador com os sacos, saquinhos e saquetas, mais o tabuleiro que suspirava fritos e açúcar e canela, arrumou tudo dentro do carro e voltou para casa certa de que ainda faltava alguma coisa, porque nem pareceria dia de festa se não ficasse alguma coisa para trás.
No quarto, quando se ajoelhou para ajudar a mãe a calçar os sapatos - não porque precisasse de ajuda, mas porque não conseguia ficar parada – reparou numa caixa colorida, um presente esquecido na pressa dos preparativos, com certeza, que nem seria dia de festa se não houvesse um presente escondido debaixo da cama. Isto não é para ir? – perguntou pegando na caixa. Estranhou a rapidez com que a mãe lha tirara das mãos: É, mas vai aos meus pés. Pensou que seria algo frágil que a mãe – com razão, ou não a conhecesse bem – não lhe queria confiar e não pensou mais nisso. Pegou no casaco da mãe, nas chaves de casa, deitou um último olhar para ver se não faltava nada, apagou as luzes, fechou a porta, desceram no elevador, ajudou a mãe a sentar-se, doces nos joelhos, caixa colorida aos pés e seguiram viagem.
Chegadas ao destino, descarregado o carro e cumprimentada a família, instalaram-se os doces no aparador e os presentes debaixo da árvore excepto, é claro, a misteriosa caixa colorida que a mãe não perdia de vista. A noite decorrera sem sobressaltos com os habituais protestos – bacalhau cozido outra vez? porque é que não podemos comer outra coisa? não há demasiados fritos na mesa? tantos doces para quê? – que ajudavam sempre a encurtar a longa espera pela meia-noite, que Natal que se preze não dispensa o ritual e nem seria dia de festa se não se contestasse o menu. Abertos os presentes, um a um, distribuídos pelos mais novos, comentados e agradecidos, restava a misteriosa caixa que a mãe lhe estendeu, num gesto teatral iluminado por um sorriso de criança travessa: Ainda há este aqui por abrir. É para ti. Curiosa, pegara na caixa, rasgara o papel que envolvia e foi então que um sonoro mugido rasgou o ar e calou as vozes que enchiam a sala. O resto do papel desapareceu como por milagre, a caixa foi finalmente aberta e o ultimo presente revelado: Mãe! Deste-me uma vaca? Adoro vacas! E uns sorriam, outros sacudiam a cabeça condescendentes, a biscoiteira mugia a cada levantar da tampa e a mãe ria, e ria, e ria, feliz por ter encontrado o presente ideal e ter conseguido manter a segredo até aquele momento, que presente que é presente tem de ser surpresa.
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Há dias, numa daquelas limpezas periódicas para despachar o que não utilizamos, encontrei a biscoiteira que, já partida, tinha sido relegada para o quintal, para junto dos sachos e das pás com que costumava jardinar. Quando lhe peguei, separou-se em duas partes, a tampa pendeu e a vaca mugiu. Raio da pilha que nunca mais acaba, pensei, enquanto relembrei aquela noite de Natal.
Já não foi para o lixo, voltou para ao pé das ferramentas de jardim.
Descobri-lhe uma utilidade: recorda-me o riso da minha mãe.