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Campesina

por Maria Alfacinha, em 01.09.15

Campesina

 

Silêncio. Um silêncio tão perfeito que qualquer ruído soa a nódoa de gordura, em toalha de linho branco. Silêncio de gente. Sem vozes, passos ou outros vestígios humanos. Agora pontuado pelo martelar das teclas - resquícios da minha velha máquina de escrever - enquanto escrevo. O vento, que surgiu do nada, qual intruso que se fez convidado, traz consigo a promessa de uma noite fresca, chocalhando os espanta-espíritos que se agitam traquinas, criando melodias doces que sabem a beijos de Verão. Há pouco, de tão fraco, mal conseguia roçar o topo dos pinheiros que, agora, se vergam desajeitados, sacudindo os ramos e sussurrando impropérios enquanto – ou será, porque? – espalham pinhas e caruma à sua volta. E eu sei que não é verdade, mas finjo acreditar que oiço as agulhas a cair.

 

Os pássaros recolhem-se, passando mesmo à minha frente, em pequenos voos acrobáticos, como se se exibissem num cenário de pôr do sol, deslizando em bandos tão compactos que quase escurecem o céu, acabando por pousar algures, em ténue chilreada, numa qualquer árvore – só posso imaginar – que lhes serve de lar. Ao longe, muito ao longe, como se num outro mundo, ouvem-se ruídos que tento decifrar: reconheço o motor de um carro, uma sirene que se afasta, alguém que chama por outro alguém, uma porta que bate. Os cães calaram-se, os meus e os outros. Todos postos em sossego como se não quisessem perturbar o meu fim do dia. 

 

A noite vem descendo sobre nós, lentamente, como se também ela tivesse sido atacada por esta ausência de pressas, este deixar que a vida aconteça, que as horas se sucedam, como se fossem mesmo 60 os segundos que, preguiçosos completam cada minuto, um a um. O céu parece vivo com o movimento de nuvens cinzentas que não me impedem de ver brilhar meia dúzia de estrelas mais atrevidas. Do outro lado da serra pequenos pontos de luz desenham um ou mais povoados que não consigo identificar. Pouco importa. Posso sempre fazer de conta que é mais uma constelação quando, da janela junto à minha cama, deitar um último olhar ao mundo antes de adormecer.

 

O sol deitou-se e a noite chegou. O céu quase negro de um azul distante, veste-se com um manto bordado a estrelas que não consigo contar. Uma chaminé desfaz-se em fumo, perfumando o ar. O chilrear dos pássaros foi substituído pelas conversas dos insectos nocturnos. A paz que me aconchega traz consigo uma certeza: sou feliz aqui.

Assim. Só assim.

publicado às 12:10


1 comentário

De Inconfessável a 01.09.2015 às 17:39

Gostei muito, Maria Alfacinha, está tão bem escrito, descrito.

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