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A casa dos meus pais, onde passei a adolescência, ficava num daqueles quarteirões antigos de Lisboa, em que os prédios se dispõem à volta de um espaço aberto, formado pelos pátios dos andares térreos. O quarto que me tinha sido destinado, o meu primeiro espaço só meu, era nas traseiras da casa, com uma pequena varanda sobre os ditos pátios. Seguindo a moda da época, a varanda foi fechada em marquise onde eu instalei o meu primeiro escritório-oficina-atelier-estúdio. Era ali que eu estudava e, quando podia ou me deixavam, inventava o que fazer com tintas, tecidos, recortes de revistas e fios de lã, escrevia desalmadamente em cadernos que escondia no fundo da estante ou martelava com convicção na minha maior preciosidade da altura, uma máquina de escrever branca e linda a que, ainda hoje, não me canso de limpar o pó. De todas as minhas numerosas actividades a mais famigerada era, sem dúvida, a casmurra aprendizagem de canções dos anos 40 e 50 num pequeno órgão eléctrico, não porque me faltasse ouvido para a música, mas porque insistia em oferecer longos concertos pela noite fora, mesmo em frente à janela aberta de par em par. Muitos anos depois os vizinhos ainda se lembravam dessa minha fase...
A vista que gozava daquele quarto fazia as minhas delícias, principalmente nas noites calmas de Verão, depois do bairro se recolher. Os prédios fechavam-se em abraços, dissolvendo-se no céu escuro, deixando-me sempre na dúvida onde acabavam uns e começava o outro. Se calhava passar por ali uma brisa atrevida, logo era espantada pelo silêncio que deslizava suavemente pelas escadas de incendio, varrendo as vozes e os passos, deixando o fechar do dia para as janelas que pouco a pouco, recordavam a hora de dormir. As janelas encantavam-me. Não conseguindo reconhecer as vidas que as habitavam, eram elas que me espicaçavam a imaginação. As das cozinhas, de vidros pequenos, enfeitadas pelo estendal da roupa. As dos quartos – deviam ser quartos, que as salas reservam-se para a frente das casas – com cortinas sóbrias, antiquadas e pesadas, herdadas, com toda a certeza, ou com tecidos esvoaçantes, de cores claras, escolhidas por quem iniciava agora - ou novamente - a vida. Aqui e ali um candeeiro tardava em descansar. Mais abaixo piscava a ponta de um cigarro esquecido em saudades. Uma voz abafada, uma porta que batia devagar e aos poucos o meu pequeno mundo enchia-se de sombras, refúgio de gatos vadios que vasculhavam os caixotes de lixo. De vez em quando um cão latia e outros respondiam como se fossem ecos batidos pela noite. Na rua, muito ao longe - que nestes pátios as vozes da cidade são abafadas pelos prédios – o reco-reco do eléctrico que reduzia a velocidade para fazer a curva, antes de se lançar na recta da rua principal, deixando como recordação o estalido das faíscas que saltavam do cabo. Ao fundo, quase em postal ilustrado, erguendo-se da mancha escura do casario, o Palácio das Necessidades, iluminado em rosa manchado pelo branco das janelas. E tudo isto era completado pelo cheiro inconfundível das plantas que floresciam na Tapada da Agronomia.
(…)
E sei lá, porque é que me lembrei disto agora…