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Em jeito de postal

por Maria Alfacinha, em 16.07.15

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A casa dos meus pais, onde passei a adolescência, ficava num daqueles quarteirões antigos de Lisboa, em que os prédios se dispõem à volta de um espaço aberto, formado pelos pátios dos andares térreos. O quarto que me tinha sido destinado, o meu primeiro espaço só meu, era nas traseiras da casa, com uma pequena varanda sobre os ditos pátios. Seguindo a moda da época, a varanda foi fechada em marquise onde eu instalei o meu primeiro escritório-oficina-atelier-estúdio. Era ali que eu estudava e, quando podia ou me deixavam, inventava o que fazer com tintas, tecidos, recortes de revistas e fios de lã, escrevia desalmadamente em cadernos que escondia no fundo da estante ou martelava com convicção na minha maior preciosidade da altura, uma máquina de escrever branca e linda a que, ainda hoje, não me canso de limpar o pó. De todas as minhas numerosas actividades a mais famigerada era, sem dúvida, a casmurra aprendizagem de canções dos anos 40 e 50 num pequeno órgão eléctrico, não porque me faltasse ouvido para a música, mas porque insistia em oferecer longos concertos pela noite fora, mesmo em frente à janela aberta de par em par. Muitos anos depois os vizinhos ainda se lembravam dessa minha fase...

 

A vista que gozava daquele quarto fazia as minhas delícias, principalmente nas noites calmas de Verão, depois do bairro se recolher. Os prédios fechavam-se em abraços, dissolvendo-se no céu escuro, deixando-me sempre na dúvida onde acabavam uns e começava o outro. Se calhava passar por ali uma brisa atrevida, logo era espantada pelo silêncio que deslizava suavemente pelas escadas de incendio, varrendo as vozes e os passos, deixando o fechar do dia para as janelas que pouco a pouco, recordavam a hora de dormir. As janelas encantavam-me. Não conseguindo reconhecer as vidas que as habitavam, eram elas que me espicaçavam a imaginação. As das cozinhas, de vidros pequenos, enfeitadas pelo estendal da roupa. As dos quartos – deviam ser quartos, que as salas reservam-se para a frente das casas – com cortinas sóbrias, antiquadas e pesadas, herdadas, com toda a certeza, ou com  tecidos esvoaçantes, de cores claras, escolhidas por quem iniciava agora - ou novamente - a vida. Aqui e ali um candeeiro tardava em descansar. Mais abaixo piscava a ponta de um cigarro esquecido em saudades. Uma voz abafada, uma porta que batia devagar e aos poucos o meu pequeno mundo enchia-se de sombras, refúgio de gatos vadios que vasculhavam os caixotes de lixo. De vez em quando um cão latia e outros respondiam como se fossem ecos batidos pela noite. Na rua, muito ao longe - que nestes pátios as vozes da cidade são abafadas pelos prédios – o reco-reco do eléctrico que reduzia a velocidade para fazer a curva, antes de se lançar na recta da rua principal, deixando como recordação o estalido das faíscas que saltavam do cabo. Ao fundo, quase em postal ilustrado, erguendo-se da mancha escura do casario, o Palácio das Necessidades, iluminado em rosa manchado pelo branco das janelas. E tudo isto era completado pelo cheiro inconfundível das plantas que floresciam na Tapada da Agronomia.

(…)

E sei lá, porque é que me lembrei disto agora…

publicado às 15:00


6 comentários

De Cris a 16.07.2015 às 15:52

A Tapada da Ajuda! Olha, já fui muito feliz na Tapada da Ajuda (de férias). Esse teu mundo encantado, visto do teu quarto, são boas memórias e por isso é que te apeteceu falar delas. Ainda bem!

De Maria Alfacinha a 17.07.2015 às 10:40

Nunca me passaria pela cabeça que alguém passasse por ali de férias.
Ainda dizem que já não se conseguem surpreender
Sim, são boas memórias, sem dúvida, acima de tudo boas sensações, mas porque raio é que me fui lembrar delas quando vinha a subir a Avenida, cheia de barulho, a meio do dia e cheia de calor??

De (des)Esperança a 16.07.2015 às 17:02

ah delicia.. tu é que devias publicar tudo isto (e o resto) em livro... deliciaaa ler-te....

De Maria Alfacinha a 17.07.2015 às 10:41

Tu és suspeita, parece que conheces todas as minhas histórias

De miilay a 16.07.2015 às 18:34

Lindo, parece que estava a ver um filme. Descreves tudo com um pormenor e doçura que se lê sem cansar. Fica-se com a imagem nítida da tua recordação.
Gostei mesmo
Abraço
miilay

De Maria Alfacinha a 17.07.2015 às 10:42

Ah, que bom Miilay! Fico satisfeita!
É que tenho a mesma sensação quando estou a escrever: parece que estou a ver um filme.
Xi grande

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