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São dois, os meus sítios preferidos para namorar Lisboa: do alto da ponte - e Ponte sobre o Tejo há só uma, a outra é a Vasco da Gama - e o Cais do Ginjal. Também as horas a que eu gosto de a namorar são diferentes. Da ponte gosto de ver a cidade pela manhã, muito cedo, ainda mal ela acordou, espreguiçando-se nesta luz branca que só Lisboa tem e que, quando se reflecte nos rosas e amarelos das fachadas dos prédios, ou no branco nacarado das igrejas, e se mistura com o azul brilhante do Tejo, transforma a paisagem num enorme azulejo de outros tempos. Ao Cais do Ginjal gosto de chegar ao fim da tarde, pouco antes de o sol se deitar, e ficar a ver a cidade a iluminar-se para a noite, descobrir cada um dos monumentos, que parecem crescer na importância do seu papel enquanto vigilantes das colinas, deixar-me embalar pelo deslizar dos cacilheiros, que se transformam em castiçais de muitas e pequenas velas, e imaginar os passos das vidas que se recolhem ao sossego do lar, ao som compassado da ondulação do rio. Sou uma romântica incurável, eu sei...
Tempos houve em que gostei de Fado. Foi já adulta que lhe ganhei alguma malquerença, pelo uso abusivo da sua carga dramática, como desculpa para a inacção a que os Portugueses se entregam. O Fado que aconchegou os meus sonhos de quase mulher, que fez bater com mais força o meu coração e enrolou o meu estômago na ansiedade e exagero dos sentidos, esse Fado eu amo. O Fado que o meu Pai transformou em canção de embalar, tornando-o meu, só meu, como se tivesse sido escrito para mim, esse Fado que eu choro quando o canto, os olhos fechados na emoção do sentimento, a voz embargada pelas saudades do que nunca vivi - a Rua do Capelão que poucos conhecem - esse é o Fado da minha vida. O Fado enquanto hino de amores não correspondidos, e odes a dores inevitáveis, que justificam a indiferença e o conformismo de gentes que já foram donas do Mundo, é algo que tenho muita dificuldade em compreender.
Talvez tenha sido por tudo isto - e tanto mais - que numa dessas tardes, no Cais do Ginjal, com o Tejo cheio, quase a bater-me nos pés, envolta na doce temperatura de um fim de dia de Verão e iluminada apenas pela visão da Lisboa com que eu gosto de sonhar, quase sem me aperceber, ergui a voz e ofereci aos céus a estrofe que, sempre soube, sei-o desde menina, poderia desenhar o meu sentir:
“Oh meu cigano adorado, viver abraçada ao Fado, morrer abraçada a ti”
Nem todo o Fado é bonito, MJ... mas alguns são lindos de morrer
(em jeito de agradecimento pelo... "testamento")