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Parece que o Verão chegou, finalmente. Já não era sem tempo, que tardava este ano, mas a noite está demasiado quente e não consigo dormir. Farto de dar voltas na cama, inventando desconfortos – a almofada amassada, a luz filtrada pelas cortinas, a boca seca, um braço dormente - resolvi levantar-me, beber um pouco de agua e, instalado no sofá, pegar no livro que, teimosamente, insisto em ler, obra de um autor tão louvado pela crítica, coleccionador de prémios e que, sabe-se lá porquê, me aborrece terrivelmente. Não foi preciso muito para que a atenção me fugisse, desculpando-se com o camião do lixo anormalmente barulhento que passava na rua, e me obrigasse a desistir dos meus propósitos. Acabei por vir sentar-me na varanda, à procura de um pouco de ar fresco e, quem sabe, do sono que não sei onde perdi. Ou talvez saiba e a verdadeira causa da minha insónia seja outra.
Ainda não consegui apagar esta sensação incómoda da figura de tolo que fiz esta manhã. Entretido com as palavras cruzadas e ensaiando, uma e outra vez, o que iria dizer, não me apercebi que ela entrara atrás de mim. Devo ter saltado no banco, quando lhe reconheci a voz - Horizontal 3, 4 letras? - e saiu-me um "o quê?" estremunhado. Ela riu – que eternidade aqueles milésimos de milésimos de segundos, em que me esbofeteei mentalmente por aquele "o quê?" rude, quase grosseiro, que deixara escapar - e acrescentou: talvez eu possa ajudar. E eu, feito palerma, sem pensar – café… quer ir tomar um café? quer dizer... a palavra é café, ou melhor... pensei que podíamos… - e ela surpresa, sem reacção, a olhar para mim, sem dizer nada, pudera, teria que me interromper, e eu que não me calava e a cada explicação que dava mais confuso ficava e olhava para a janela aberta, a nossa janela, sim, era a nossa janela porque tinha sido por causa dela que nos tínhamos conhecido, a nossa janela por onde, naquele momento, eu teria fugido se pudesse, e pedia-lhe, pedia a uma ja-ne-la! – que idiota, mas que idiota – que me ajudasse e pusesse fim aquela tortura.
Senti, então, que a mão dela pousara discretamente no meu braço - assustei-o, desculpe – e o seu rosto em sorriso – foi sem querer – e eu, finalmente calado, retribui o sorriso e esperei que ela continuasse a falar, enquanto ela falasse eu não abriria a boca, não balbuciaria mais disparates ou soltaria um outro “o quê?”, ou outra expressão boçal que me impedisse de fazer boa figura – que diabo, logo hoje que até fiz a barba com cuidado – e ela deve ter percebido o meu embaraço, ou talvez fosse impressão minha e, ajeitando a mala no colo – estava muito barulho, não percebi o que disse – dando-me tempo para que voltasse a respirar normalmente e explicasse num tom de voz firme – infusão de grãos torrados e moídos, 4 letras, café – e já calmo – e lembrei-me que talvez pudessemos tomar um café. Ela respirou fundo, pensou durante um instante e sorriu – Sim, claro. Amanhã? – e eu, perdido o interesse nas palavras cruzadas, que me entretêm quando não tenho com quem falar, dobrei o jornal e assenti – Amanhã.
Só agora reparo que a lua brilha mais que as luzes da cidade. Vou voltar para a cama. A noite continua quente mas o sono regressou e anda aqui a rondar. Ou isso, ou comecei a gostar de café.
in (...)
o outro lado