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O pedinte

por Maria Alfacinha, em 15.01.14

 

Sentara-se na esplanada deserta, aproveitando a trégua da chuva que caíra toda a manhã, disposta a afogar em chá quente e doce, a dor de cabeça que não a largava. De dedos entrelaçados abraçando a chávena, saboreava a bebida em pequenos goles, observando quem passava. Era hora de almoço e os edifícios em volta despejavam pessoas, apressadas, sozinhas ou em grupo, mas todas obviamente com um propósito por cumprir. Na estrada o número de carros também parecia ter aumentado - ou talvez fosse a dor de cabeça que a enganava – e as buzinadelas, travagens e arranques desastrados, aconchegavam o, já por si, quase ensurdecedor ruído da cidade. Estranhou, por isso, quando ouviu um chocalhar metálico e, quase num murmúrio, um “Deus o abençoe!”. Do outro lado do passeio, um homem de idade avançada, barba espessa e desalinhada, de mão estendida, distribuía bons-dias a quem passava, na tentativa quase sempre vã de chamar a atenção. E a quem lhe deixava uma moeda, o velho sorria a bênção.

 

Os pedintes lembravam-lhe a avó, mulher poupada e avisada que reservava numa divisória da carteira algumas moedas para dar. Todas as manhãs saía para o mercado e a cada troco que recebia, separava uma ou duas moedas, que distribuía discretamente pelos pedintes que encontrava no regresso a casa. Dias havia em que o dinheiro não sobrava e ao passar por algum dos seus protegidos sussurrava: “Tenha paciência, hoje já não posso. Talvez amanhã”. Conhecia-os a todos, ou pelo menos assim parecia. Fora dela que ouvira, pela primeira vez, a história do homem que fez fortuna a pedir na rua - “Dizem que tem uns prédios para Benfica e que recebe umas boas rendas” - e talvez por causa disso cada novo pedinte com que se cruzava era rigorosamente analisado: que a esmola fosse gasta na taberna mais próxima não a chocava tanto como pensar que fingiam uma fome que não tinham, ou não precisavam de ter. Ao jantar o avô ralhava-lhe ternamente: “Lá foste tu dar dinheiro aqueles desgraçados!” Ela sacudia a mão na direcção da cozinha: “A nós não falta sopa, pois não?”e o avô, pouco dado a mostrar o que sentia, escondia no guardanapo o amor que lhe tinha.

 

A queda de uma cadeira interrompeu-lhe o pensamento. Era hora de regressar ao trabalho. Bebeu o resto do chá, pegou na mala e ajustando o casaco ao corpo atravessou o passeio. Num impulso meteu a mão no bolso, recolheu todas as moedas que encontrou e deixou-as cair na mão do pedinte. Não seria uma fortuna, tinha certeza disso, nem sequer uma quantia digna de menção, mas mentalmente pediu desculpa à avó pelo desgoverno. E enquanto descia a rua, ouviu: “Deus a abençoe!”.

Sorriu e deixou que o coração voasse por entre a chuva que recomeçara a cair.

Lá do sítio para onde vão os que amamos, a avó tinha-lhe roubado a dor de cabeça.

publicado às 14:09


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