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Não me chegam os dedos das mãos (e dos pés) para contar quantos cães já enriqueceram a minha vida. Todos diferentes e todos iguais no amor incondicional que me ofereceram. Cada um com o seu feitio, em pouco tempo acabavam por se adoptar uns aos outros e aprender rotinas e regras sem grande dificuldade. Todos menos um: Dom Simão.
Dom Simão era o cão mais asneirento que possam imaginar. Roubava comida, vasculhava o lixo, destruía almofadas e mantas, fuçava-me a mala até descobrir o pacote de açúcar que ali estava esquecido e engolia-o com papel e tudo. Quantas e quantas vezes lhe tirei as coisas mais incríveis da boca, e nem sei como é que nunca se feriu com os disparates que fazia. Dom Simão só se portava bem quando dormia e felizmente dormia muito.
Cabeçudo como mais nenhum que alguma vez tenha conhecido, quando Dom Simão metia alguma coisa na cabeça não havia nada a fazer. Teimoso que nem uma mula, mesmo quando não conseguia exactamente o que queria, acabava por vencer toda a gente pelo cansaço. Nem um santo aguentava horas de olhares e gemidos dilacerantes para ganhar uma casquinha de maçã…
Desajeitado até a andar, parecia ter pernas a mais e não saber o que lhes fazer. Quando se dignava a sair da cama, trotava quintal acima, quintal abaixo, nunca em linha recta, de cauda bem levantada e a abanar ao ritmo dos passos. Se por acaso encontrasse qualquer obstáculo no caminho ou se desviava – se fosse a tempo – ou simplesmente passava por cima. Fosse qual fosse a opção escolhida, nem sempre acabava bem, principalmente quando o obstáculo era… o Sô Pepo.
Dom Simão sempre foi muito gabado… nas fotografias. Ao vivo não tinha muita piada, se é que tinha alguma. Ignorava toda a gente e quase todos os outros patudos. Só duas coisas lhe prendiam a atenção: comida e lixo. Ah e caixas, ou sofás, ou almofadas, ou camas ou qualquer canto fofo onde se pudesse aconchegar. Dom Simão não brincava, não fazia gracinhas, não respondia quando o chamavam, aproximava-se de quem lhe queria fazer festas apenas o tempo suficiente para lhes cheirar as mãos e verificar se tinham alguma coisa que se comesse.
Talvez por isso o tenham abandonado por duas vezes. Ou talvez fosse pela saúde que nunca teve. Dom Simão nunca se queixava. Suportava o mal-estar e as dores sem um gemido. Enroscava-se na cama e esperava que passasse. Frágil como um passarinho, não têm conta as vezes que pensámos que não ia sobreviver e ele surpreendia-nos sempre. Em horas mais difíceis pedia-lhe que nos desse um sinal, ou que se deixasse ir mas Dom Simão, o cabeçudo, recusava-se a desistir e a nós restava-nos apenas fazer tudo o que pudéssemos para honrar tal força de viver.
Teimoso, badalhoco, desobediente, fedorento, asneirento, desajeitado, Dom Simão era o cão mais manso que alguma vez conheci, que sorria quando lhe aconchegávamos a manta ou que acordava sobressaltado só para ver onde estávamos e que fazia os maiores disparates com o ar mais inocente sem mostrar qualquer arrependimento, obrigando-nos (quase) sempre a sorrir. Dom Simão, o doce, ao lado de quem me sentei toda a tarde, que ouviu tudo o que lhe disse, que carreguei ao colo e que deixei partir nos meus braços, ficando em mim um vazio imenso difícil de explicar.
Sim, era apenas um cão.
Dom Simão Patareco, o pior cão do mundo.