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A noite de Domingo estava quase no fim. Cristina acabara de arrumar a cozinha e preparava-se para se enroscar no sofá com um livro na mão, quando notou uma grande agitação na rua. Gente que corria, vozes exaltadas. Abriu a porta da rua e percebeu que havia um incêndio ao fim da rua. Pegou no casaco e saiu a correr. Era a casa da D. Hermínia, uma senhora de idade que vivia sozinha e que, naquele momento, olhava em desespero as chamas, amparada por uma vizinha. Aproximou-se.
— D. Hermínia! Está ferida?
— Ai Cristininha. O meu Pantufa está lá dentro e ninguém me deixa ir lá dentro buscá-lo!
Cristina olhou rapidamente para a casa:
— Claro que não, D. Hermínia. Onde é que ele ficou?
— Na cozinha. O meu sobrinho tinha acabado de sair lá de casa e eu fechei o Pantufa na cozinha para comer. Quando voltei à sala, a D. Isabel estava a bater-me à porta a dizer que havia chamas no primeiro andar. Olhe, puxou-me cá para fora e já não pude ir buscar o Pantufa.
Cristina despiu rapidamente o casaco e pô-lo por cima da senhora:
— Parece que ainda não há chamas lá atrás. Deixe ver se o tiro de lá – e correu pelo pequeno quintal, desaparecendo nas traseiras da casa.
Os vizinhos, alertados pelo barulho, tinham saído para a rua e afastavam os carros para dar passagem aos Bombeiros que, entretanto, chegavam com grande alarido. D. Hermínia recusava-se a sair do mesmo sítio, agora duplamente aflita com o gesto de Cristina. Os Bombeiros ligavam as mangueiras às bocas-de-incêndio mais próximas e tentavam afastar os curiosos.
— Está alguém dentro de casa? – perguntou alguém.
A vizinha que amparava D. Hermínia respondeu sem saber muito bem a quem.
— A D. Cristina foi lá dentro buscar o cão.
Ouviu-se um resmungo.
— Raios partam as velhas mais os animais. Só dão trabalho!
Viraram-se algumas cabeças tentando perceber quem tinha falado. Um pouco afastado da multidão estava Sérgio, o sobrinho de D. Hermínia, de mãos nos bolsos e atitude desafiadora. Um homem aproximou-se dele.
— É hoje que lhe parto a cara! Já perdemos a paciência há muito!
D. Hermínia mantinha-se de olhos fixos na casa.
— Não lhe liguem! – pediu lacrimosa – Esse desgraçado é mais infeliz do que possam pensar.
O homem voltou-se para a idosa.
— Não o defenda, D. Hermínia! É um chulo, não entende? Vive à sua conta e ainda vem para aqui provocar?
D. Hermínia olhou suplicante para o homem que falava.
— Seu Zé, ele é filho da minha pobre irmã. Nunca teve sorte na vida.
O homem ia responder, mas foi interrompido por outra vizinha.
— Ali vem ela! – gritou, apontando para a casa.
Cristina surgira por trás do fumo com uma trouxa nos braços. Os vizinhos aproximaram-se para a ajudar e Cristina entregou a trouxa à idosa.
— Pronto, D. Hermínia! Aqui está o seu Pantufa. O pateta estava debaixo da mesa e não queria sair. Tive que o embrulhar no casaco para que ele não me mordesse.
Já nos braços da dona, o Pantufa ainda a tremer, não escondia a sua alegria lambendo o rosto da dona.
— Eh! Esse casaco é meu! – gritou Sérgio, puxando o blusão com tanta força que D. Hermínia quase caiu.
Seu Zé, já irritado, desferrou-lhe um murro.
— Irra homem! Você faz perder a paciência a um santo.
Sérgio ficara caído no chão esfregando a cara onde lhe tinham batido. Um polícia aproximara-se e segurara o braço de José:
— Então, o que se passa aqui?
Sérgio erguia-se com dificuldade.
— Ainda bem que está aqui, senhor guarda. Este tipo agrediu-me sem razão nenhuma.
O polícia olhou-o irónico.
— Não foi isso que me pareceu. Pegue no casaco e vá à sua vida.
Sérgio apanhou o casaco do chão resmungando. O polícia debruçou-se.
— Isto é seu?
Na mão tinha um fio de ouro grosso com um medalhão. D. Hermínia gritou:
— O meu fio!
Sérgio encolheu os ombros.
— Não tenho nada a ver com isso!
O polícia ajeitou o chapéu, e voltou-se para Hermínia.
— Este fio é seu, minha senhora?
D. Hermínia assentiu balbuciando:
— É sim! É o fio da minha avó.
Os vizinhos rodearam Sérgio.
— Este homem é um traste, senhor guarda. Explora a tia e, pelos vistos, também a rouba.
O polícia guardou o fio no bolso e, pegando num braço de Sérgio, encaminhou-o na direcção da outra rua.
— Resolvemos isso na esquadra – e, voltando-se para a D. Hermínia, – é melhor vir também connosco. Pode descansar um pouco, enquanto os Bombeiros acabam o seu trabalho.
Cristina voltara para casa. Os dias seguintes decorreram sem grande sobressalto. Os filhos de D. Hermínia tinham vindo ajudar a limpar os estragos e salvar o pouco que restara. Tinham descoberto o guarda-jóias aberto e a pobre senhora confirmara que tinham desaparecido a maior parte das suas jóias. Sérgio, embora negasse o roubo, tinha sido preso. D. Hermínia, depois de passar umas semanas em casa de um dos filhos, optou por se mudar para o lar mesmo ao lado do bairro onde tinha passado quase toda a vida. Cristina ofereceu-se para ficar com o Pantufa e, todas as semanas, iam visitar a antiga dona ao lar. Cerca de um ano depois, Hermínia morrera serenamente. Cristina recordava uma das últimas visitas que lhe tinha feito. Era Natal e a idosa, já muito frágil, tinha toda a família à sua volta e chamara-a para ao pé de si:
— Cristininha. Já falei com os meus filhos e eles concordam comigo.
Pegou no pequeno guarda-jóias que estava na mesa ao seu lado e estendeu-lho:
— Quero que fique com isto. Não há mulheres na família que as queiram usar e eu sei o quanto gostava de as admirar.
Cristina tentara recusar, mas a vontade da senhora e a concordância dos filhos fizeram-na pegar na caixa. Abriu-a devagar sob o olhar feliz da idosa:
— Muito obrigada, Hermínia. Que belíssima prenda!
— Só tenho pena que tenham desaparecido tantas. Aquele malandro devia andar a roubar-me há muito tempo – suspirou e acrescentou com um sorriso travesso – mas olhe, se ele não as tivesse roubado, se calhar os meus filhos não deixavam que ficasse com elas! – E riu-se com vontade, sob os protestos dos filhos.
Poucos dias depois morreu. Uma semana após o funeral, Cristina pegou no guarda-jóias e dirigiu-se à garagem. Afastou algumas caixas e, por trás delas, tirou um pequeno embrulho feito com panos de cozinha. Desenrolou-o cuidadosamente, revelando algumas jóias. Uma a uma colocou-as na pequena caixa, fechou-o e colocou-o dentro da mala. E nessa mesma tarde tinha entrado pela primeira vez na sala onde agora se encontrava.
Castro e Silva pigarreara, interrompendo-lhe os pensamentos. Em cima da mesa estava um largo estojo com a tampa levantada, expondo as jóias da D. Hermínia. Cristina aproximou-se e suspirou tão profundamente que Castro e Silva não conseguiu evitar um sorriso.
— Mudou de ideias?
Cristina retribuiu-lhe o sorriso:
— Não – respondeu, pegando num par de brincos com pérolas falsas. – Vou apenas ficar com estes brincos como recordação.
Estendeu a mão a Castro e Silva:
— Muito obrigada por tudo. Refaça por favor as contas e avise-me quando toda a documentação estiver pronta, sim?
Castro e Silva acompanhara-a até à porta do elevador que, mais uma vez rangeu durante todo o trajecto até ao rés-do-chão. Cristina vestiu o casaco e abriu a pesada porta. Respirou fundo e sentiu o ar frio de um Inverno que lhe parecia agora menos rigoroso. Na mão ainda conservava os pequenos brincos. Olhou-os demoradamente e pensou:
— Como é que se costuma dizer? Nenhuma boa acção fica impune?
E, soltando uma gargalhada, deixou cair os brincos no bolso do casaco e desceu a rua em passo decidido.