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Um outro primeiro

por Maria Alfacinha, em 23.04.15

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Deve ter sido uma prenda qualquer. Talvez fosse Natal, ou Páscoa, ou dia da Mãe, ou do Pai - dos Avós não devia ser, não tenho memória que então houvesse um dia que fosse deles - ou talvez não houvesse qualquer data a celebrar. Não me lembro e quem se talvez se recordasse já não o pode fazer. Pouco importa a ocasião (ou a falta dela) pois não me disseram em menina que havia dias para dar, todos os dias eram dias de dar. Haviam, isso sim, dias para receber, que na época uma prenda era sinal de festa, e agora que penso nisso, nunca estranhei esta diferença. Por isso digo que devem ter sido uma prenda, aquelas folhas de papel pardo cobertas com desenhos - que as letras ainda só sabiam palavras curtas - contando uma qualquer história com final feliz. A minha primeira estória escrita que, em passe de mágica, se fez livro, graças a uma guita de pastelaria. O meu primeiro livro.

 

Mais tarde, quando as letras já conheciam pronomes e verbos e substantivos, vieram mais estórias em folhas brancas de impaciência, com enredos estranhos e mórbidos, que os finais felizes aborreciam-me por serem sempre iguais. E as folhas guardavam-se em caixas que escondia debaixo da cama, nas gavetas da roupa ou no fundo do quintal, naquele buraco descoberto no muro que partilhava com a escola, que pensava ser só meu e que um dia, numa cena digna de qualquer uma das tragédias que escrevia, soube ser conhecido por toda a rua e ainda mais alguém. Ah, maldita curiosidade dos crescidos, dotados de uma ingenuidade tal que não entendem que, nem o mais alto louvor ou demonstração de orgulho, consegue mitigar a dor da exposição pública dos segredos de uma criança! Foram-se as vontades de estórias minhas e durante muito tempo refugiei-me nas que os outros contavam.

 

Mas vivia em mim um bichinho que me atormentava, um nervosinho miúdo que me colava a caneta nos dedos, como se lhe pertencesse, como se tivesse sido criada para ser minha. E depois de muitos rascunhos e fúrias de impotência, encontrado o caderno ideal, nasceu um mundo, uma outra vida, quase uma aventura, menos fantástica mas não menos fantasiosa, apenas um sonho do que queria ser, desenhado em letra redonda, salpicado de bolinhas pontuando os iiis, com direito a título, autor, data de criação e rematado com um requintado FIM, o meu primeiro livro de quase mulher. Não corri riscos. Levei-o comigo para onde fosse até à noite em que, percebendo que não o poderia proteger para sempre, o tornei eterno, lançando-o no fogo da lareira.

 

Um dia colocaram-me nas mãos um outro primeiro. Folheei-o sem o ler, deliciando-me nas letras arrumadas em tipos de imprensa, descobrindo-lhe um cheiro diferente dos que conheço, de papel e tinta ainda sem idade, o cheiro dos livros que ainda não têm dono, perfeitos no corte que ainda ninguém desalinhou, na maciez das páginas que ainda não foram lidas. Acariciei a capa brilhante de vermelho que quis velho e o título que foi mote para desafio. Tomei-lhe o peso, medi-o em dedos descobrindo-o pequeno e incrivelmente enorme no que é. E durante todo dia levei-o comigo para onde fosse, bem perto de mim, espreitando-o de quando em vez, mãe orgulhosa de um rebento muito desejado. O primeiro passo no caminho de um sonho, a prova cabal que nada é impossível, que a vida tem mil inícios e é feita de renovação. 

 

Guardo-o com carinho, o brilho já marcado pelas dedadas de tanta carícia, rabiscado de tantas correcções. Outros primeiros se seguiram, que de meu pouco tinham - talvez as asas que lhes sonhei - e outros primeiros se seguirãoMas nunca se esquece o primeiro, mesmo que não seja só nosso...

publicado às 15:07



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